Na encruzilhada-sonho com “João”, Ronie Rodrigues e João Gilberto Noll 

Manejando o pincel de corretivo líquido como um arqueólogo empunharia uma pequena pá em busca de tesouros soterrados, Ronie Rodrigues apagou páginas inteiras de “Harmada”, de João Gilberto Noll. Em outras, sobraram palavras e frases. E o resultado é o livro recém lançado “João” (Telaranha, 2024).

A técnica de Ronie se aproxima do Transtexto, são parentes na grande família da literatura experimental, motivo do meu interesse acadêmico. Fiz quatro leituras de “João”, até então, enviei dois blocos de perguntas a Ronie (sempre por e-mail), e trocamos muitas mensagens de texto e áudio. O primeiro resultado é esta entrevista, parte de minha leitura/conversa com o autor, em uma tentativa de pesquisa/escrita sem chegar muito perto. 

Dan: Qual a técnica que você usou e o processo de criação de “João”?

Ronie: Acordei mais cedo que o habitual. Sonhei essa noite com essa entrevista. Como num livro de Noll, estive em deriva contigo. Havia lama, um ônibus, uma rodoviária, tentativa de roubos, mijo, merda e as perguntas a serem respondidas. 

Mais do que uma técnica, o que me move a escrever e criar são procedimentos e muitos deles envolvem experimentos de restrições, como em programas performativos ou como nos jogos do grupo francês OULIPO.

Em “João”, a restrição era a seguinte: arrancar aleatoriamente as páginas do livro “Harmada”, de João Gilberto Noll, e com um corretivo líquido, criar-apagar outro texto em cada página, sem incluir nenhuma palavra que não estivesse na própria folha.

Esse processo durou mais de um ano e em seguida mais um ano de montagem do material.Como numa edição de filme, a montagem foi tão ou mais importante que o processo de escrita apagamento.

“João” pode ser lido como um palimpsesto.

E como Lia Duarte aponta no texto de quarta página do livro, para dar lugar a esse outro texto, o acaso precisou operar.

Dan: Por que a escolha de “Harmada” e de João Gilberto Noll? Qual a importância desse autor para você e seu trabalho?

Ronie: Novamente o acaso, o descaso, o desejo. João Gilberto Noll é um dos meus escritores brasileiros preferidos. O primeiro livro que li dele  foi “O cego e a dançarina”. Eu tinha apenas 15 ou 16 anos . Eu já fazia teatro na época, e foi lendo Noll que eu pude encontrar na literatura algo que eu sentia, sinto e espero seguir sentindo: a fúria do corpo.

Sobre a escolha de “Harmada”… Talvez “Harmada” que tenha me escolhido e pedido pra ser destruído. Fodemos. Eu fodi o livro e como a gente sabe ou intui, ninguém goza sem uma dose de objetificação do corpo do outro.

Contardo Caligaris dizia que o sexo é o que despedaça o corpo, o amor é o que reconstitui. Eu trepei e amei com “Harmada”. Despedacei “Harmada” e o reconstituí.

E o que me fez buscar por esse livro em específico não foi sua narrativa, pois eu não lembrava e não lembro de absolutamente nada da história do livro. Eu precisei não relê-lo para poder escrever “João”. O que me atraiu mesmo por “Harmada” foi o homem da capa desta edição:

Dan: Seu livro anterior é um ensaio-poema. Você formou-se e trabalhou com artes cênicas. “João”, segundo a apresentação da Raissa Goes, é uma performance. Pensando em gênero textual, como essas atividades se misturam, se é que se misturam, e como eles te levam até “João”? Como você classificaria o livro? Gênero do texto é uma preocupação quando você está escrevendo?

Ronie: De todas as perguntas, talvez essa que tenha tirado meu sono, ou que tenha me levado para essa rodoviária estranha. Não havia passagem para essa cidade chamada Baleia. Quando eu voltei para te encontrar você estava num barracão e tudo me lembrava um espaço alternativo de teatro. Eu pisei numa merda. Merda é o que dizem as atrizes e atores não é mesmo? Será que ainda se diz isso?

Você ainda quer ser atriz?

Eu quis classificar “João” como um romance, mas em nenhum momento do processo eu me preocupei ou me perguntei sobre o gênero textual. A minha preocupação era com as páginas. Eu tinha tesão e medo a cada página arrancada. Medo de fazer merda… E quem não faz, não é mesmo?

Dan: Recentemente, em entrevista a um podcast, você disse que havia pensado que o material resultante seria cartas, mas depois identificou uma narrativa nele. Os personagens foram escolhidos ou de algum modo, eles se impuseram no processo? 

Ronie: Em uma entrevista, perguntaram a Isabelle Huppert como ela construía seus personagens e ela respondeu que para ela personagens são caducos. Quando ela atua, ela não pensa em personagem, pensa em mudança de estados. Essa frase dela nunca saiu da minha cabeça, talvez porque eu nunca tenha conseguido ou desejado construir personagens, nem como ator ou ex-ator que sou, nem como pessoa que escreve.

Os personagens em “João” aparecem e desaparecem como num sonho ou como se fossem paisagens.

No meu sonho dessa noite eu te via, mas você estava com outra pessoa, podia ser o homem manco do livro. Eu tentava comprar uma passagem para uma cidade chamada Baleia. Um homem tentava me ajudar a amarrar minha bicicleta e para isso retirava o elástico da sua calça e me mostrava uma parte de seus pentelhos e pau.

Minha mãe me esperava em algum lugar da rodoviária. Você me aguardava dentro de um ônibus, ansioso para terminar essa entrevista.

Volto para “João”.

Os personagens estão em fuga.

Notas:

1 – Transtexto é minha principal técnica de criação experimental. https://danporto.blogspot.com/p/transtexto.html 

2 – Grupo francês da década de 1960, que propunha a criação de textos literários a partir de jogos e desafios matemáticos.

3 – Gérard Genette, 1982. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Traduzido por Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho, 2006. “Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo”.

4 – Referência ao livro “A fúria do corpo” (1981), de João Gilberto Noll.

 5 – Frase de “Harmada”.

 6 – Um dos personagens de “Harmada”, mantido em “João”.


Ronie Rodrigues é artista transdisciplinar e professor de língua francesa. Formado em Direção Teatral pela Unespar (PR) e especialista em Escritas Performáticas pela PUC (RJ). Integrante da grupa de escrita “Membrana Literária” e criador, em parceria com a artista Gladis das Santas, da trilogia em dança “Cachaça sem rótulo”, “Pão com linguiça” e “Patrya”. Publicou pela Editora Urutau os livros “Apagar histórias com a língua” e “Roubar os mortos. Lamber os vivos”.  Fotografia por: Luana Navarro

Entrevista por:

Dan Porto é artista, escritor, professor e produtor cultural. É especialista em Linguagens e suas Tecnologias (UFPI) e em Artes (Faculdade São Luis). É porta-voz do ‘Transtexto’ e do ‘Homo Poeticus’, e criador dos projetos ‘As Pessoas de Fernando’ e ‘Ler o quê?’. Publicou ‘Pequeno Manual do Vestibular’ (2009), ‘Raridades’ (2011), ‘Viver e ajudar a viver’ (2014), Série Poética: ‘Just it’, ‘Carménère’, ‘Xilema’ (2015), ‘A cura da Aids’ (2017), ‘tempo de ninguém’ (2022), ‘Transtexto’ (no prelo), ‘Teresa e o pássaro azul’ (no prelo), além de textos avulsos em jornais e revistas de literatura. Integrou o Conselho Editorial desta revista no ano 2022. @danportoeu 


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