Muito se fala academicamente nos desdobramentos da pesquisa no campo das artes visuais enquanto campo do conhecimento. Indagações como de que maneira a proliferação de metodologias de pesquisa podem ampliar – em termos de produção e teorização artística – a investigação das diferentes manifestações e movimentos nas Artes. Neste texto, pretendo abordar rapidamente o caso do retorno à pintura (especialmente do retrato) na pintura contemporânea a partir do estudo de obras da coleção do Museu de Arte Murilo Mendes (UFJF) (cujo acervo data, predominantemente, do período modernista) pelo artista Guilherme Melich.
Dentre as obras que compõem o acervo de artes visuais que pertenceu ao poeta, destacam-se retratos elaborados por diversos artistas, brasileiros e europeus, tais como Arpad Szenes, Maria Helena Vieira da Silva, Guignard, Flávio de Carvalho, Ismael Nery, entre outros. Ao visitá-lo e recriar o imaginário artístico no qual o poeta juizforano estava inserido, o artista Guilherme Melich produziu uma série de quadros retratando os artistas autores dos retratos de Murilo. As pinturas, esboços e desenhos elaborados por Guilherme vão compor a exposição Olhar A(r)mado – na galeria Retratos-Relâmpago do MAMM, no segundo semestre de 2019, além de originarem a publicação de um livro com o resultado da pesquisa, contendo artigos e imagens das obras produzidas.
A reflexão sobre as possibilidades e limites da representação que atravessa a arte a partir do séc. XX, encontra interpretações particulares na pintura, sobretudo nos retratos. É certo que, ao longo da história da Arte, na pintura, o retrato se estabelece como gênero no século XIV, associando sua elaboração à representação de figuras ilustres, mas, sobretudo, construindo narrativas e arquétipos identitários.
Entretanto, nos meandros da subjetividade da pintura, sempre houve, para além da representação, certa adulação dos atores representados, especialmente por conta da necessidade econômica do artista – importante fator para manter sua produção e sustento. Por este motivo, os cânones que se estabeleceram ao longo das distintas temporalidades históricas desenvolveram um encolhimento do espaço para busca de outras possibilidades para a pintura.
Na modernidade, o advento da fotografia se apresenta como a maneira mais adequada e verossímil de representação, inaugurando uma disputa nos diversos campos semânticos das artes, oportunizando novos meios de se pensar o retrato. Hoje, ao voltarmos nosso olhar para os diversos movimentos artísticos modernistas, podemos observar a busca por protagonismo na exploração dos limites conceituais das definições no campo das artes como tônica principal, dilatando repertórios estéticos e libertando os artistas da hegemonia dos cânones acadêmicos vigentes. Por outro lado, com a intensa hibridização das definições conceituais nas artes, bem como com a eclosão da criação de novos aparatos tecnológicos, a arte contemporânea passa a explorar novas maneiras de se pensar e propor arte, dando lugar a performances, happenings, instalações, fotografia, video-arte, deixando, de certa forma, a pintura, e o retrato, na periferia das temáticas e técnicas abordadas.
O trabalho de Melich propõe investigar o recente retorno à pintura na contemporaneidade, mais especificamente o retrato – partindo do exercício da pintura, após análise e pesquisa do acervo de artes visuais do poeta Murilo Mendes, alocado no MAMM/UFJF. Deste modo, propondo retratar os artistas que retrataram Murilo, Guilherme constroi narrativas visuais que buscam dialogar com os atores que orbitavam o circulo de convivência de Murilo Mendes, procurando trazer para o espectador a experiência do seu processo criativo, explorando a pintura como ferramenta para manipulação da matéria pictórica, fazendo da tinta substrato para modelagem dos retratos sobre a tela.
Em sua pesquisa e busca por uma estética pictórica visceral, o amadurecimento da técnica na pintura levou o artista a entender a importância do processo criativo, desde a escolha das imagens de referência como a utilização da cor para definir as formas, onde as pinceladas generosas distribuem uma paleta exaustivamente trabalhada e promovem a criação de imagens instáveis, onde a distância que separa o espectador do quadro também separa a representação da abstração.
Neste exercício do olhar sobre o processo da pintura, diante das obras do acervo, fica clara a intenção do artista de se inserir no circulo de amizades do poeta, fantasiando cada personalidade em conversas com os retratos em construção. A inquietação do artista exprime a necessidade de colocar na tela e devolver para o mundo o produto de sua percepção, revelando, na busca por um resultado cromático digno de adentrar no território das artes visuais, a tentativa de deixar rastros de sua existência. Nesse sentido, ao olhar para o mundo com perplexidade e registrar o produto de sua percepção, Melich pavimenta o caminho que permite que seus pensamentos se desloquem para a materialidade do mundo, o que, de certa forma, acaba revelando a centelha mais curiosa e contemplativa do ato criador: o olhar do artista.
Frederico Lopes é Artista e Escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco e é fundador da Bodoque Artes e ofícios.