Entre pintar palavras e escrever desenhos

por: Marcus Cardoso

O método ecfrástico tem sido utilizado durante todo o período histórico das artes. Inicialmente desenvolvido como um método retórico, trazia em seu uso e significado a representação verbal de uma representação visual. Nesse sentido, uma descrição de uma escultura ou ilustração. Assim, o que se tem é, durante todo o período histórico, a criação de poemas descritivos de quadros. Poesia e pintura estão intrinsecamente ligadas desde a antiguidade clássica, sendo sempre matéria de comparação, ora as aproximando, ora as distanciando. A máxima utilizada por Horácio, em sua poética, por volta do século 20 A.c., denota muito essa relação: ut pictura poesis, ou “como é a pintura, é a poesia”. O trabalho que os estudos interartes vêm fazendo, desde a modernidade, é justamente em demonstrar os distanciamentos: “a poesia não é como a pintura”, escrevia Diderot. Com o desenvolvimento da história artística da humanidade, o exercício ecfrástico foi ganhando outros contornos e tendo seu sentido expandido, incluindo outras artes e formas de representação artísticas.


Essa expansão faz com que uma música feita à partir de um quadro pode
ser considerada écfrase, desprendendo-a da necessidade de uma linguagem verbal: a écfrase pode abarcar representações visuais, sonoras, cinematográficas, entre outros. Incluindo também relações intermidiais, ou seja, o intercâmbio entre suportes de produção, como o vídeo e páginas de internet interativas, que transformam e representam outras obras. Apesar de todas essas inclinações intermidiais ligadas com o desenvolvimento tecnológico da contemporaneidade, Sophia de Mello Breyner Andresen se mantém, ainda, no poema escrito, na linguagem verbal como ferramenta de expressão artística, inclusive de produção de intertextualidades e éfrases à partir de telas ou esculturas, principalmente por conta de sua ligação com a Grécia clássica.


A obra de Sophia tem várias referências à amigos e familiares, sendo
personalidades da época ou não. A pintora Maria Helena Vieira da Silva,
pintora portuguesa, tem seu nome e suas obras referenciadas em uma série de poemas, e sabe-se que elas eram muito amigas e íntimas.

A autora se refere também ao marido de Maria Helena, o pintor húngaro
Árpád Szenes. O casal, no final dos anos 1940, passa um período no Brasil,
mais especificamente no Rio de Janeiro, onde produzem algumas obras.
Nessas obras, principalmente nas de Arpad, encontra-se obras em que o pintor retrata sua esposa no oficio de pintar, e muitas vezes a retrata no processo de criação e obras que realmente existiram e foram expostas, criando assim camadas de leitura e referências nas obras dos dois artistas.

No livro Ilhas, lançado e 1989, encontra-se um poema que, apesar de curto, propõe uma série de leituras transversais e semióticas, à partir de uma obra de Arpad, em que ele representa Maria Helena. O poema é datado de 1959 e, nitidamente, traz uma écfrase, exercício esse que também é
encontrado em diversos momentos da obra da poeta portuguesa.


No poema, Sophia usa a figura do tríptico, e indica a relação com a pintura justamente no título “Tríptico ou Maria Helena, Arpad e a Pintura”. Não é mencionada uma obra específica, o que abre uma camada de leitura que indica que a descrição abarca também a relação do trabalho dos pintores mencionados com seu ofício. Outra ordem de pensamento sugere que “Maria Helena” indique a obra, Marie-Hélène X, pintada em 1942 por Arpad Szenes (ver Anexo 1), mencionado também no título. Com o termo “Pintura”, no final, completa-se a ideia de tríptico, que permeia todo o poema e mesmo o quadro em que se inspira.


A écfrase construída por Sophia não é calcada em sua definição
originária, em que busca apenas a descrição dos objetos dispostos na cena,
com seus detalhes e materialidades, cores e formas – o que retomaria a ideia grega do exercício ecfrástico. Nesse poema, Sophia propõe muito mais uma investigação da consciência do objeto pintado. Nesse sentido, então, a ideia do tríptico se reproduz já no quadro: não como uma forma tríptica clássica, em que três telas estão ligadas uma à outra, fazendo com que as telas centrais complementem a central, mas sim com a representação de uma tela dentro da outra: Arpad pinta Maria Helena pintando Arpad que, em sua representação, está pintando. Pode-se observar três telas: a tela em que Arpad (pintado) está pintando, a tela que Maria Helena está pintando e, por fim, a tela que Arpad (ser humano) pintou. É essa semiótica do pintar que Sophia explora, buscando compreender o que difere o ato ativo de pintar da passividade de estar sendo pintado.


Analisando a forma em que o poema foi composto, observa-se a forma
também tríptica de divisão, em que há apenas três estrofes, numeradas em seu início por números romanos. Cada estrofe é composta por uma linha, sempre centralmente dividida pelo sinal de dois pontos, como pode-se perceber na citação abaixo:

I 
Eles não pintam o quadro: estão dentro do quadro
II
Eles não pintam o quadro: julgam que estão dentro do quadro
III
Eles sabem que não estão dentro do quadro: pintam o quadro
(ANDRESEN, 2018)

Nota-se que, nas duas primeiras estrofes, as frases que vêm antes dos dois pontos denotam ação, a atividade do pintar, enquanto as que se encontram depois do sinal de dois pontos indicam a consciência possível dos pintores. Isso se inverte na última estrofe, em que a ação se desloca para depois dos dois pontos e a consciência para a antes. Nessa troca, e somente nessa inversão, é que a ação e a consciência mudam, também: a negação de pintar torna-se, agora, a ação da pintura e a consciência atinge os personagens do poema, fazendo-os cientes de que não estão dentro da pintura.

Pode-se propor, como toda semiótica que envolve a écfrase, o poema e o quadro de Arpad, que o símbolo de dois pontos simbolize a tela, o substrato em que o quadro vai ser pintado. Com isso, temos o lado de fora e o lado de dentro do quadro: o pintor, fora do quadro, que age sobre ele, pintando-o, e a pintura, que tem uma ação dentro de si: Maria Helena pintando Arpad pintando. Essas camadas são representadas em todo o poema.

Na parte primeira, o poema pinta uma ação com “Eles não pintam o quadro”, que está do lado de fora da obra, seguindo a semiótica descrita no parágrafo acima, e um espaço quando “estão dentro do quadro”, deixando entender que os personagens (Maria Helena e Arpad) tem suas representações feitas dentro da obra.

Na segunda parte, então, observa-se a primeira alteração: fora do quadro (ou antes dos dois pontos) a frase continua igual, mas dentro da obra (ou depois dos dois pontos), Sophia inicia uma tomara de consciência, que retira das representações pintadas a certeza da existência, pois “julgam que estão dentro do quadro”. As relações entre produto e produtor começam a se mover, fazendo com que um estranhamento se instale dentro da obra.


Na terceira parte do poema há uma inversão, e a espacialidade se desloca pra fora da obra, e a consciência volta-se para o pintor, onde “eles sabem que não estão dentro do quadro”. Junto com a frase “eles pintam o quadro”, posta depois dos dois pontos, coloca-se o leitor no lugar do espectador da obra final, como se exposta numa parede de galeria: as representações se tornam representações apenas, e a consciência se desloca para o artista, que sabe que pintou uma obra.

Pode-se interpretar, então, que Sophia propõe uma imersão inversa do quadro, ou seja, propõe-se uma leitura de dentro pra fora, buscando atingir o pintor-produtor da obra, que não é mais representação. Como se a leitura começasse do quadro dentro do quadro, da última instância de representação, do símbolo que é desenhado por um símbolo e, nisso, projeta nossos olhos interpretativos até fora da tela em si: considerando o artista que o pinta, Arpad, e que está fora da tela, mas faz parte da obra. Sophia transforma em écfrase, também, o ato da feitura da obra, inserindo no quadro também o pintor que pinta, através da ação do pincel.

Deste modo, o poema cria uma nova forma de olhar a tela, através da investigação dos símbolos e da sugestão de que os objetos ali sabem que são pinturas e que estão sendo pintados, brincando com a relação criador/criatura, misturando a linha entre a atividade do pintor e a passividade do pintado. A écfrase tem esse poder de transmutação, de investigar o além do quadro, misturando os vários olhares que o atravessam.


Compreende-se, pois, que Sophia busca criar um poema à partir de um
exercício ecfrástico da contemporaneidade, exercício esse marcado pela
descrição subjetiva da obra, pela interpelação do leitor e também pela
dificuldade de descobrir qual a obra de arte à qual se refere. No caso desse
poema, não existe um traço ou descrição em que possamos afirmar com
exatidão e clareza qual obra de Arpad é citada: é preciso fazer ligações e
aproximações, até mesmo pela opção em não descrever ambientes e formas e cores: o que interessa para Sophia é proporcionar ao leitor uma experiência que se aproxime do efeito que a obra causa.

Sophia, então, expande leituras e adiciona camadas à obra, fazendo com que a relação entre leitor-poema-tela seja modificada, propondo outra forma de olhar o quadro. A obra ainda existe (e permanecerá) existindo fora do poema. E, por si, o poema apreende uma camada de leitura mesmo que o leitor não tenha contato com o quadro. Porém, quando essas duas obras se encontram, dentro das sinapses do leitor, abre-se uma porta de percepções e relações que a écfrase causa: uma terceira coisa, uma terceira obra, sempre mais pessoal e subjetiva, que proporciona relações e novos olhares, ainda. Sophia abre uma porta que te encaminha para várias outras, e assim sucessivamente, propondo o inesgotável da arte.

BIBLIOGRAFIA

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HANSEN, J. Categorias epidíticas da ekphrasis. In: Revista USP, n. 71, p. 85-
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HEFFERNAN, James A. W., Museum of Words: The Poetics of Ekphrasis
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1993

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