i venti

Respire, apenas respire...
Anotou no pedaço de papel
A senhora sentada no mirante
Resolvera subir a montanha novamente
Queria comemorar seu aniversário 70
Apreciando a vista que conhecera na infância
O sol poente desenhava filigranas de luz
As aves cantavam em festa
Os olhos marejados, tateou as rugas
A memória saudosa
Um semblante sereno combinando com suas madeixas grisalhas
As mãos a sentir o macio da vegetação
Flores atapetavam um caminho desconhecido
O vento trouxe aromas suaves...
Um sorriso brotou
Ela teve a ideia
Recordou-se dos tempos lecionando mitologia grega
- A ti, Éolo, entrego o conselho de meu coração.
Disse, em tom solene
- Carrega o papel. Sabes o que fazer.
Coração palpitante, mão erguida segurando o bilhete
Uma lufada de ar passou...


Alta madrugada na fazenda
Lua cheia brilhava contra um fundo azul escuro
Cigarras improvisavam um coral
Os amigos cantavam ao redor da fogueira
Dois jovens tocavam violão
Gostavam de músicas nacionais antigas
Ela estava calada mexendo em seu cabelo de pontas azuis
Refletia na letra... vento ventania...
Olhou para o jogo de sombras dançantes
As chamas crepitando
- O que farei da vida?
A jovem indagava ansiosa
As vozes dos amigos pareciam distantes
Um vento gelado a fez tremer
Decidiu pegar seu cachecol
Chegando na barraca seu olhar estancou
Um papelito agitava-se preso ao zíper
Ficou curiosa. Pegou. Leu. Respirou profundamente.
Sentiu o cheiro do mato e ouviu a coruja piar
Então, num ímpeto tipicamente juvenil
Coração palpitante, mão erguida segurando o bilhete
Uma lufada de ar passou...


Suas pegadas formavam uma curva na areia molhada
A água fresca do mar lhe subiu até os joelhos
O sol despontava no horizonte
As ondas embalavam seus pensamentos
Contemplava o oceano vasto e misterioso
Embevecida... sem palavras
Ela adorava caminhar pela praia de manhã
Pensar na vida. Sentir a vida.
Os fios ruivos de seu cabelo comprido esvoaçavam
Inspirava os odores do ambiente
Inspirava-se para as terefas do dia
Sentia-se pacificada e serena. Revigorada.
No caminho de volta, olhando para baixo
Procurava mais conchinhas para levar
Viu uma porcelana-dourada e a pegou
Estranhamente tinha um papel agarrado
Leu uma frase com letras... sim
Parecidas com as de sua avó
Concordou com a sentença
Pronunciou baixinho um agradecimento à Iemanjá
Coração palpitante, mão erguida segurando o bilhete
Uma lufada de ar passou...


O parquinho do museu ardia ao meio-dia
Crianças faziam algazarra
Corriam de um lado para o outro
Algumas girando velozmente no brinquedo
Tudo sob o olhar atento dos pais
Falavam sobre a canseira de criar filhos
Aquela garota careca irradiava alegria
Sobrevivia a um tratamento de câncer
Nas costas a mochila com desenho do personagem favorito
O padrasto lhe deu água de coco
Rogou que ficasse à sombra
E brincasse devagar, sem exageros
Ela subiu no escorregador
Um vento fresco mexeu com as folhas das árvores
Acariciou seu rosto e a fez fechar os olhos
Sentiu algo roçando a mão
Pegou um papel amassado
Leu devagar, quase soletrando
Lembrou da aula de ioga da tia Penélope
Imitou a posição de lótus que vira tantas vezes
Coração palpitante, mão erguida segurando o bilhete
Uma lufada de ar passou...


Andava apressada em meio à multidão
Irritada com a falta de espaço
Preocupada com o tempo exíguo
Ajeitou os óculos no rosto pela centésima vez
Maquinava o roteiro de sua apresentação
Batalhou anos por essa chance de negócio
Superou preconceitos e provocações. Pensou na esposa.
Agarrou a bolsa marrom junto a si
Equilibrou no salto, alisou o tailleur, olhou-se no espelhinho
Nuvens cinzas ocuparam o céu anunciando tempestade
Trovoadas rugiram, gotas caíram. Relâmpagos do final da tarde
Ventou forte, arrastando tudo pelos ares
Um guarda-chuva rosa passou dando cambalhotas
Balões vermelhos rodopiaram caoticamente
Grudou-lhe no pescoço um pequeno papel gasto, amarelado
Pinçou entre o polegar e o indicador da mão esquerda
Colocou diante dos olhos. Leu. Releu. Trileu.
Os dedos da mão direita enrolando os cachinhos
Olhava estupefata, abstraída da confusão na avenida
Coração palpitante, mão erguida segurando o bilhete
Dobrou o papel, guardou no bolso
Respire, apenas respire...

Gabriel Lopes Garcia é poeta. Atua como professor de Física nas horas vagas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *