22. Querença

*** Alerta de gatilho: o texto possui conteúdo sensível para portadores de transtornos de ansiedade e pânico. 


– O que foi, mãe?

O garoto havia notado algo diferente no telefonema recebido por sua mãe, que, ao final da ligação, ficou lívida como as nuvens esparsas no horizonte daquele início de tarde.

Eles haviam saído para almoçar com uma amiga e seu filho, que regulava um pouco com a idade de seu filho único.

– É o seu pai. Parece que ele não responde às chamadas telefônicas e postou algo suspeito na rede social.

Muito curioso, o garoto, de apenas 9 anos, acabava sabendo de tudo que acontecia ao redor, não havia assunto em que ele não infiltrasse o seu ouvidinho atento.

– Marina, disse a amiga, o que querem fazer?

– Vamos até a casa dele.

E lá foram todos. O garoto apreensivo e a mãe nervosa. Marina havia se separado de Eduardo há dois meses e meio. Entre brigas, acusações e mágoas, ele se sentira completamente abandonado por ela, pois considerava o motivo – a gota d’água – irrelevante para uma definitiva separação. Durante esse período, ele, humildemente, tentara, em diversas ocasiões, a reconciliação. Nada havia conseguido a não ser longos discursos de Marina justificando sua decisão, que já estava tomada, segundo ela. Por isso as desconfianças em torno do pretenso “sumiço”.

Ao chegarem a casa, a mãe e a irmã de Eduardo já estavam à porta do Edifício. O garoto olhava tudo com desconfiança. Ele havia saído há pouco dali. O que poderia estar acontecendo? Entraram, subiram as escadas; Marina tentou abrir a porta da sala, sem sucesso. Começaram a gritar pelo rapaz e tocaram a campainha, inclusive o garoto, que, a todo momento, dizia:

– Pai, pai, abre a porta, pai!

Após um tempo, resolveram chamar a polícia, que demorou um bocado para acorrer aos familiares aflitos. Os vizinhos da frente já teciam opiniões sobre os fatos, disseram não ter ouvido nada estranho. A polícia estava indecisa no que fazer. Marina rogava por uma solução. Resolveram arrombar a porta que dava acesso à área externa. Enfim, após alguns minutos, um dos policiais conseguiu arrombar a porta. Pediu que todos ficassem onde estavam e, de arma em punho, entrou na casa e fez uma varredura completa, deixando somente a porta do quarto do casal fechada no momento. Todos já estavam de frente para ela, e o guarda, de olhos esbugalhados, abriu suavemente o obstáculo último, encontrando uma atmosfera com odor acre, Eduardo deitado na cama toda desalinhada.

Apenas o garoto, a amiga de Marina e seu filho ficaram do lado de fora da casa. O menino parecia encarar o vazio, esfregando os dedos das mãos nas palmas; ele queria entrar a todo custo, mas a amiga o segurava, abraçando-o num misto de força e carinho.

O policial sentiu a pulsação de Eduardo e percebeu, abrindo suas pálpebras, a pupila dilatada, diagnosticando intoxicação. A irmã de Eduardo, numa atitude intempestiva, após ler, no grande espelho do guarda-roupa feito exclusivamente para Marina, “Sem amor não há vida”, começou a sacudi-lo, chorando e dizendo “E nós, nós não te amamos, Eduardo?”, debruçando-se sobre ele. Marina não esboçava nenhuma atitude, estava em choque, como se estivesse vivendo em um mundo paralelo, um sonho ruim que, a qualquer momento, iria se dissipar. No entanto, nesse sonho, ela remoía a morte de Eduardo.

A unidade do Samu chegou e, antes de começarem os preparativos no intuito de levar o pretenso suicida, Marina vai até o filho e, contrariando a todos, chama-o para entrar na casa, mostrando a porta da sala obstruída por um sofá e uma cadeira, levando-o até o quarto onde se encontrava seu pai desacordado. O garoto olhava tudo numa desordem mental sem fim, remexendo os olhos de um lado para outro. Quando avistou o pai envolto naquele mar de gentes, parou extasiado. Era a primeira vez que lhe assoprava no ouvido a querença da Morte. Marina achega-se ao filho, dobra os joelhos em um movimento litúrgico e diz ao pé do ouvido do menino:

– Vai lá, dá um beijo no seu pai.

E ele foi, pé ante pé, como se enxergasse um defunto, dar um beijo em sua face descorada.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br


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