NATURES MORTES

 I

o amor não é um objeto estéril
da mesma forma que
o poema não é um objeto histérico

 II

teu medo frente aos ciganos denuncia
teu medo daquilo que não fica para sempre
-- te conto, nada fica --
Charles Ray, Plank Piece I (1973). MoMA.
Declamação por: Hélen Queiroz, Doutora em Educação pela UFRJ e Poetisa.
 III

certo como os corpos são feitos de água
e por isso vibram
ao mais ínfimo sinal de som; 
dedicamos horas soltas
à peregrinação esotérica
d’um país-deriva: fábula rasa 
que se cita, en passant, quando 
na apanha das cerejas é 
preciso desinventar o silêncio,
e certo ainda 
como a aferição da curva matemática
que se traça quando arfante
o filho do homem vai ao chão, 
para a conferência da saliva que se mede 
-- em mililitros --
na mãe que apaga 
o rabisco em carvão, 
 [único contorno verdadeiramente livre] 
no rosto do menino;
ficamos nós a aguardar a hora [factual]
-- e preterida --
da declaração do óbito
i.e., 
da incontornável asseveração
 que aquilo que ainda brilha
é somente
 verniz
&
confete. 
Declamação por: Hélen Queiroz, Doutora em Educação pela UFRJ e Poetisa.
IV

Duas bombas explodiram hoje 
no céu de Cabul
arrebentaram-se mesmo 
antes de beijar o chão
e o ar, se encorpando 
de ausências 
-- matéria-prima da fuligem -- 
fez-se um ‘entre’
que é o tempo próprio 
da espera 
do dente que, ao devorar a fruta, procura o caroço. 
Duas bombas, informa o periodista 
e restava a sala vermelha.
você diria depois que as bombas
quando explodem não produzem realmente som
porque a morte chega antes
o ruído é fato probatório 
aos que continuam vivos, ou melhor
semi-vivos
[sabemos, afinal, nenhum homem retorna inteiro da guerra]
você é a prova
Portanto é natural que recordemos o que fazíamos
quando doeu mais
e o interesse da boca
-- magma pulsante --
quando conscientemente derradeira.
iria
mas
fiquei
pois você temia a ausência de som das bombas
como um menino
que segurando no cocho da mão um tacanho girino
aguarda o escoamento da poça
queria morrer, disse, comigo respirando-lhe 
n’ouvido
foi, a sério, o último
não porque nos consumiu a bomba
mas porque na casa aquática
no côncavo da mão, no côncavo do peito
rareou[-se] o ar
Duas bombas explodiram hoje no céu de Cabul
restou-lhe o ruído surdo
natural as testemunhas
e a mim
o sabor das cinzas
que na terça passada lembrou-me
ligeiramente
 mel. 
Duas bombas explodiram em Cabul, 
a contragosto
sobrevivemos.
Charles Ray. Plank Piece II (1973). Tate.

Henrique Grimaldi Figueredo é doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Pesquisador Visitante na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Atua como editor executivo do periódico Todas as Artes, situado no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (UPorto).


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *