A MORTE DE DAVID CRONENBERG

A morte, o morrer e a mortalidade compõem um imaginário universal, parte das crenças religiosas e fonte de inspiração para as artes. O caminho pedregoso até o fim último – caso a vida não se abrevie precocemente pela doença ou pela tragédia – é o envelhecimento, processo que o cinema explora de inúmeras formas. Em Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., dir. Billy Wilder, 1950), Norma Desmond (Gloria Swanson) é prova de como Hollywood pode ser cruel com as mulheres depois que envelhecem. Já o ator e diretor Clint Eastwood, nas últimas décadas, usa de sua própria figura para mostrar, sem cerimônias, as marcas do tempo. Mas foi o também cineasta, roteirista e ator canadense David Cronenberg quem abraçou – literalmente – a própria morte.

Atenção: este texto é uma crítica, não um obituário.

Em “The Death of David Cronenberg”, lançado na plataforma Super Rare em setembro de 2021, o protagonista que dá nome ao filme entra em cena e se detém ao pé da cama, num quarto estreito em tons pastéis. Ele, que está de roupão, olha fixamente sobre a câmera por alguns instantes, em primeiro plano, até se mover e sair de quadro pela esquerda. Sobre a cama vemos o corpo do cineasta, lívido e inerte, com os olhos fechados e a boca entreaberta. O homem deita ao seu lado e o abraça, a pele corada em contraste com a tez cinzenta do defunto, que é ele próprio. A reação não é de horror, mas de candura. Assim termina o curta-metragem de cinquenta e seis segundos, resultado de uma colaboração entre Cronenberg, que o escreveu e estrelou, e sua filha Caitlin, que o produziu. Nessa meditação sobre a mortalidade, sua inevitabilidade e a metamorfose da vida em morte, os temas do cineasta encontram sua expressão mais íntima.

Cronenberg é um expoente do body horror, cujas representações explícitas da violência marcaram o cinema de horror dos anos 1980. Seus filmes dialogam com questões da medicina moderna, como as técnicas cirúrgicas experimentais, a engenharia genética e a clonagem. De fato, o cineasta nunca escondeu seu fascínio pelo imaginário médico e científico. Na verdade, foi com o intuito de estudar Ciências que entrou para a Universidade de Toronto no início dos anos 1960, mas logo migrou para o curso de Língua Inglesa e Literatura. Só então tomou gosto pelo cinema. Seus primeiros filmes – Calafrios (Shivers, 1975), Enraivecida na Fúria do Sexo (Rabid, 1977) e Os Filhos do Medo (The Brood, 1979) – definiram um dos principais traços de sua obra: o choque de extremos, tais como o grotesco e o poético, o erotismo e a morte, o desejo e a repressão.

Nos posteriores Videodrome: A Síndrome do Vídeo (Videodrome, 1983), A Mosca (The Fly, 1986) e Gêmeos – Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988) há personagens ligados ao mundo da ciência, experimentos que alteram o corpo de forma irreversível e organizações com propósitos escusos. Em Crash: Estranhos Prazeres (Crash, 1996), o desejo sexual leva à morte; eXistenZ (1999), por sua vez, extrapola a síntese do biológico com o tecnológico, outra marca de sua obra. Afinal, muitos desses híbridos de horror e ficção científica transcorrem em mundos de tecnologia onipresente.

De acordo com Jack Morgan, o horror nasce quando tomamos consciência de que o nosso corpo é um organismo vivo, cuja existência, até certo ponto, escapa às vontades da mente. A existência “à parte”, ligada a processos extremos – como a gravidez e o parto, o sonho e o pesadelo, a morte e a doença… –, seria a fonte primária desse gênero narrativo. E um desses processos é o envelhecimento, que os filmes de horror tratam, em geral, como a sina que se abaterá sobre todos nós – quase uma maldição. Ao mesmo tempo, provocam reflexões profundas e revelam como as rugas, os cabelos brancos e a senilidade ainda são, em grande medida, tabus na sociedade contemporânea.

Por trás da fachada mórbida, há no filme de pai e filha um aspecto sensível e intimista. Cronenberg perdeu sua querida irmã Denise em maio de 2020. Anos antes, em 2017, perdeu a esposa Carolyn – que editou alguns de seus trabalhos. Na tentativa de se reconciliar com a dor e encontrar a paz, concebeu mais do que um filme de horror; nas suas palavras, esse é “um filme sobre o amor e o aspecto transitório do ser humano”. As perdas inspiraram o curta-metragem. Se na obra do cineasta noções como assimilação, mutação e contágio são metáforas de processos inevitáveis, seu cinema termina, invariavelmente, no ponto final da experiência humana. David Cronenberg não morreu.


Referências

CAPISTRANO, Tadeu (org.). O cinema em carne viva: David Cronenberg. Rio de Janeiro: WSET Editora, 2011.

MELASON, Angel. The Death of David Cronenberg: An Alarming Title For A New Short Film. Fangoria, 20 set. 2021. Disponível em: https://www.fangoria.com/original/the-death-of-david-cronenberg-an-alarming-title-for-a-new-short-film/. Acesso em: 29 set. 2021.

MORGAN, Jack. The Biology of Horror: Gothic Literature and Film. Southern Illinois Press, 2002.

PEARCE, Leonard. Watch: David Cronenberg Faces Mortality in New Short Film The Death of David Cronenberg. The Film Stage, 21 set. 2021. Disponível em: https://thefilmstage.com/watch-david-cronenberg-faces-mortality-in-new-short-film-the-death-of-david-cronenberg/. Acesso em: 29 set. 2021.


Lúcio Reis Filho é Doutor em Comunicação, historiador, professor e cineasta. Dedica-se, principalmente, às relações entre Cinema, História e Literatura, com ênfase nos gêneros do horror e da ficção científica. É criador do Projeto Ítaca, sobre mitologia e suas representações na cultura pop.


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