FERMENTO PRA MASSA: A PADARIA NA POÉTICA MUSICAL DE CRIOLO

Fermento Pra Massa é a quinta faixa de Convoque Seu Buda (2014), terceiro álbum solo de Criolo. Na letra deste samba clássico temos um narrador afetado pelos problemas sociais que o cercam, utilizando, entre outros recursos, metáforas ou alegorias com elementos de padaria para contar suas histórias. 

Não foi a primeira vez que Criolo mergulhou nessa. Em Linha de Frente, do álbum Nó na Orelha (2009), também temos o retrato de uma “padaria”, que nunca vendeu pão e é comandada pelos clássicos personagens de Maurício de Souza: Cebolinha, Magali, Cascão e Mônica. Outro grande samba, mas voltemos a Fermento Pra Massa.

Hoje eu vou comer pão murcho
O padeiro não foi trabalhar
A cidade tá toda travada
É greve de busão tô de papo pro ar

Um ponto interessante nesse refrão, que abre a música sendo cantado quatro vezes seguidas, é o movimento de ida e volta entre os impasses pessoais e coletivos. O sujeito inicia seu relato de uma perspectiva estritamente pessoal, mas, nos dois versos seguintes, traz mais sujeitos a tona e um problema muito maior. Já no último verso ele explica a causa inicial do transtorno, mas termina retomando numa situação individual. Aqui as figuras da padaria ainda aparecem literalmente, mas já podemos ver como uma alegoria escolhida para se falar da greve de ônibus na cidade.

Tem fiscal que é partideiro
Motorista bicheiro e DJ cobrador
Tem quem desvie dinheiro e atrapalha o padeiro
Olha aí, seu doutor

Na nova estrofe aprofunda-se mais na situação da greve, e podemos supor seus motivos originários: o fiscal, o motorista e o cobrador não têm essa profissão como única, além do desvio de dinheiro. Aqui continua o já citado movimento entre pessoal e coletivo, além de dar uma pista sobre o interlocutor no último verso. Jornada de trabalho excessiva e desvio de dinheiro estão entre os grandes problemas sociopolíticos do Brasil e, voltando à padaria e entrando no movimento proposto, o ato de desviar dinheiro ajuda a promover a exploração da classe trabalhadora. Dessa forma atrapalha o padeiro, que não vai trabalhar, e o sujeito vai comer pão murcho. OLHA AÍ, SEU DOUTOR!

Eu que odeio tumulto
Não acho um insulto manifestação
Pra chegar um pão quentinho
Com todo respeito a cada cidadão

Agora o narrador opina diretamente sobre a questão: apesar de odiar tumulto, ele apoia a greve. E o pão quentinho, que pode nos fazer retomar sua situação individual, serve também para simbolizar os direitos exigidos nas manifestações, além de ele ressaltar que é “a cada cidadão”, revelando de outra forma o já destacado movimento entre pessoal e coletivo.

Em seguida, o refrão é repetido mais duas vezes e retoma novamente as estrofes já citadas, até culminar em uma nova parte da canção:

Então, parei (Parei)
E até pensei (Pensei)
Tem quem goste
Assim do jeito que tá

As palavras entre parênteses representam intervenções das vozes de apoio na música, que intensificam a epifania do narrador: ele parece ter entendido mais profundamente a situação e agora traz uma visão ainda mais crítica, que se intensifica na estrofe seguinte.

Farinha e cachaça é fermento pra massa
Quem não tá no bolo disfarça a desgraça
Sonho é um doce difícil de conquistar
Seu padeiro quer uma casa pra morar

Nessa estrofe chegamos ao ápice da perspectiva que motivou este texto, já que temos metáforas com a padaria nos quatro versos. No primeiro temos o “fermento pra massa”, que dá título à música, citando a farinha e a cachaça como meios de “encher o povo” ou “fazer o povo crescer”. No segundo, retoma-se a ideia da estrofe anterior, já que aquele que gosta “do jeito que tá”, não está no bolo que sofre com a desgraça, e, talvez por ajudar a promove-la, também disfarça. O terceiro verso traz o “sonho”, esse delicioso doce que costumamos encontrar na padaria e que é um deleite não apenas para o paladar, mas também para brincar com a palavra que lhe dá nome, gerando esse duplo sentido. O narrador de Criolo finaliza retomando a figura do padeiro, que representa quem está no “bolo” e que depende do ônibus para ir trabalhar, sofrendo a desgraça da dificuldade de se realizar sonhos que deveriam ser direitos de todos, aqui representado por conseguir uma casa pra morar.

O refrão é cantado mais quatro vezes e a faixa se encerra.

Desde seus primórdios, o samba carrega esta característica de cantar letras com críticas sociais, mesmo que trazendo um ar de comicidade em sua construção. O álbum seguinte de Criolo, Espiral de Ilusão (2017), é inteiramente dedicado ao samba, e temos vários outros exemplos deste aspecto.

Ainda vale destacar o incrível trabalho instrumental que deu vida a esta canção. Da guitarra (instrumento intruso na ideia de “samba clássico”) à cuíca, podemos notar o brilho de cada componente da banda. A produção é de Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral.

Ficha técnica – Fermento Pra Massa (Criolo): Criolo (vocal); Marcelo Cabral (violão de 7 cordas); Maurício Badé (percussão); Rodrigo Campos (cavaco e percussão); Kiko Dinucci (guitarra e percussão); Juçara Marçal (backing vocal); Verônica Ferriani (backing vocal)


Flávio Miranda tem 23 anos, é músico, estudante de letras e, antes de tudo, escritor das ideias que lhe vêm a mente. Sempre gostou de escrever sobre tudo e, quando conheceu mais o mundo das artes, se propôs a fazer análises da construção de algumas obras. Atualmente, se dedica ao registro de vídeos para seu canal no Youtube e volta e meia publica textos em seu perfil no Medium.


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