MEMENTO MORI: EXCURSOS PANDÊMICOS [2]

A descoberta da nova variante da covid-19, denominada Omicron, é também o signo de uma outra fase desse circuito pandêmico que parece se atualizar mais uma vez. O ocaso desse momento reflete tanto a persistência de uma realidade que há pelo menos dois anos anuncia sua irreversibilidade, nos convidando a afirmar que os esforços de tratar toda equilibração sanitária como um “novo normal” se tratam, na verdade, de um memento mori, uma simbolização tardia de um mundo que já morreu; tanto quanto a incapacidade a nível global de dar o passo urgente para o descaminho também global: uma tomada de posição radical ante ao sistema-mundo que se globalizou, a saber, a forma hegemônica do capitalismo. Se a máxima benjaminiana está certa, de que a revolução é o freio de mão da história, somos como pilotos ingênuos, crentes no poder historicista da Graça – de que a história por sua boa vontade irá nos poupar da condenação e criar pontes para que cheguemos seguros do outro lado.

Mas assim como qualquer filme de ação em que os pilotos enfrentam aquilo que seria a corrida decisiva ou a disputa final da competição, que coloca a prova a própria vocação daqueles que ali participam, há sempre uma trilha sonora que controla a percepção do espectador – o detalhe importante é que se essa trilha não existisse para nós, isto é, se assistíssemos à cena tal como ela estaria sendo realizada em plano real, a cruel dureza daquele momento provavelmente destituiria a percepção a-histórica e crente com que acompanhamos o evento. É a trilha sonora que nos protege do Real acontecimento de que ali provavelmente não há um desfecho narrativo, mas apenas um amontoado de contigências, uma série de improvisos existenciais desorquestrados. Proporei aqui um ensaio advertido dessa informação. Aqui nossa trilha sonora serão os acontecimentos tal como conformados pela mídia e seu correlato real ou desencantado será a decadência evidente do estado de bem-estar mítico, uma espécie de Bolero de Ravel no qual o caráter do andamento vai se estreitando até seu aspecto máximo, mantendo a mesma instrumentação, ritmo e melodia.

§ moderato affetuoso As primeiras reações à variante consistiram em denunciar sua origem “terceiro mundista”, já que o continente africano – o continente com maior número de países com baixíssimas taxas de vacinação populacional – seria o local-sede dessa mutação viral, que já se confirma como mais transmissível do que a variante Delta, por exemplo.

O insight desse acontecimento é mais previsível do que parece: fomos informados que antes que a África do Sul pudesse confirmar a presença da variante no continente, ela aparecera antes na Holanda, com cerca de 15 dias de antecedência. Esse pode ser mais um caso de sujeito-suposto-contaminar – que já tínhamos visto em sua versão pandêmica no ataque ideológico viral contra a China no início de 2020 – em que não é o conteúdo da realidade que informa sobre os acontecimentos, mas a estrutura da informação já é impressa no formato ficcional da suposição da realidade; pois ainda que fosse confirmada a veracidade de uma variante africana, a suposição de contaminação estaria (discriminatoriamente) comprometida. 

§ moderato com fuoco. Embora no Brasil, o discurso anti-vacina tenha obtido uma adesão abaixo do esperado, se considerarmos o empenho de comunicadores alinhados ao governo em propagar toda sorte de informações com alto teor conspiratório e o avanço da vacinação no país, a realidade em muitos países da Europa tem sido ostensivamente resistente ao apelo das autoridades de saúde em prol da vacina. As manifestações antivax já agregam milhares de cidadãos que defendem sua liberdade de escolha frente à imunização, forçando agora medidas mais severas por parte dos governos na exigência de conformação desses sujeitos às medidas preventivas. Até a trágica imunização por indução forçada do vírus tornou a aparecer como alternativa desses grupos que já não se eximem de organizar protestos em favor do “meu corpo, minhas regras”. Acontece que para chegar nesse nível de contradição, o conceito mesmo de liberdade precisou entrar num curto-circuito que expõe a contradição do uso inadvertido da ideia de liberdade presente em discursos muito comuns nos movimentos de esquerda.

Talvez o questionamento leninista é adequado para essa situação: “liberdade para quem?” ou, parodiando Adorno, “liberdade para quê?”. Afinal, a máxima da liberdade como significante vazio faz acontecer aqui a inversão totalitária do par lacaniano de S1(significante-mestre, organizador de um regime simbólico)-S2(o saber por excelência, a performance a posteriori ao S1): a liberdade vira saber “louco”, contra o qual não há escrúpulo nem defesas mediante o fracasso instaurativo do S1. O revés da “liberdade louca” é que ela pode ser liberdade, inclusive, para condenar outros corpos à morte.

§ moderato con brio. O imbróglio desse contexto nos leva a reconsiderar a dimensão teológico-política incutida no cerne da ética com que buscamos conter a contraforça que parece ter se aliado ao vírus e explicitou o caráter político e sistêmico de uma pandemia. Quero dizer que, não é por acaso que essa guerra passou a ser traduzida em termos de “luzes” contra as “trevas”, “conhecimento científico” contra “ignorância paranoica”, ou simplesmente “esclarecidos” contra “negacionistas”. A parte curiosa desse embate é a estrutura estritamente religiosa desse antagonismo, há muito já fornecida pelos teóricos frankfurtianos na “A dialética do esclarecimento”, pois nessa ocasião a tese de que o mito se convertia e esclarecimento e o esclarecimento em mito é porque uma posição refém dessa dialética acabaria por servir aos encantos que levaram a mitificação da razão científica. Mas de que forma aqueles que assumem o caráter salvador da ciência encontrariam seu reflexo oposto, os terríveis seres não-esclarecidos anti-ciência e anti-vacina que se espalham mesmo nas sociedades tidas como mais democráticas e educadas?

Um encaminhamento para essa questão é que a ciência, como a dupla Adorno e Horkheimer acertadamente nos mostraram, nunca foi, nem será o horizonte de redenção de nossa experiência humana. Retomar o debate a esses termos talvez seja sinal de que ainda não nos livramos dessa crença. A(s) ciência(s), na medida em que são por excelência (auto)crítica e descentrada não poderia se comprometer a tal tarefa. Na verdade, a questão ética dessa discussão é saber: se sabemos do benefício probabilístico atual desse ou daquele método de promoção de saúde, por que optaríamos pelo risco da morte, pela deriva destrutiva de um vírus?

§ moderato risoluto. O último momento dessa reflexão aqui é pensar no presente pelo qual estamos lutando atualmente. Se a pandemia provocou uma transformação que não permitiu com que nos mantêssemos os mesmos até aqui, por que não levar essa decisão adiante, assumindo a tarefa de que não é possível caminhar na mesma direção que a tentação midiática insiste em disseminar, de que estamos voltando a um estado de coisas “normal”? Por que diante da demonstração explícita da fragilidade de um sistema como o nosso, não apostar no “pior”, isto é, na destituição da forma de vida que bancamos até este momento? Afinal, se termino aqui com uma pergunta, é porque a necessidade de uma revolução radical passa diretamente pelo enfrentamento daquilo que fonte de resignação para nós mesmos.


[1] BENJAMIN, W. Experiência e pobreza (1933).


Micael Correia tem 23 anos e é um escritor não-autorizado. Tem experiência em Psicologia Clínica e se interessa pelas áreas de Psicanálise, Filosofia e cultura popular.


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