RESIGNAÇÃO

Escrevo aqui sobre a morte, o temor da morte, a ausência de vida enquanto grita-se de desejo pela vida, a balança equilibrada que ora pende para um lado ora por outro e que todos sabemos que um dia simplesmente irá tombar.

Eu nunca havia me preocupado com a morte até poucos meses após o início da pandemia. Eu que sempre me considerei a pessoa mais empática do mundo, esboçando luto e dor que eu julgava verdadeiros por aqueles que já estavam sofrendo as perdas trazidas pela doença, descobri que há um quê de egoísmo até nos seres humanos mais empáticos e talvez seja realmente impossível de fato SENTIR, em maiúsculo, por algo, até que se tenha passado pela mesma experiência. Podemos ficar tristes, comovidos, mas o sentimento do outro nunca irá atingir nosso âmago na mesma proporção, arrepiar nossa pele como arrepia a do outro, adentrar nossa mente como uma erva daninha como adentra a do outro, simplesmente porque o sentimento não é nosso, é do outro.

Eu costumava encarar a morte com a leveza de uma inocente. “É mesmo uma pena, todos vamos morrer.” Quando alguém morria, havia um choque temporário, especialmente caso se tratasse de uma pessoa mais jovem, como o Danilo, meu colega do curso de inglês, que morreu atropelado por um ônibus na esquina de casa em São Paulo, poucos meses após se mudar para lá. Essa era uma morte diferente das outras, porque ela permanecia nas pessoas. Eu, que sofri com a depressão e a ausência de tesão pela vida por muitos anos, sempre que entrava em meu estado de melancolia inexplicável e o pássaro azul de Bukowski cantava, eu pensava no Danilo. Lembrava dele chegando nas aulas de inglês, um jovem perfeitamente capaz de caminhar as duas quadras que separavam a escola de sua casa sozinho, porém, sempre acompanhado pela mãe. “Sou filho único”, ele dizia, “ela é encanada e não gosta que eu ande sozinho.” Então, sempre que eu me sentia mal, pensava no Danilo e em sua mãe, e me sentia na obrigação de viver.

Nenhuma outra morte me impactou tanto. No fim das contas, todos irão, velhos, jovens, natural ou acidental. Nunca me preocupei com a minha saúde. Sobrepeso, uma paixão gritante por lanches, álcool, erva, ácido, cogumelos, “mas só essas drogas mais leves, porque as outras aceleram o coração e isso é muito perigoso”, porque independente da gente se preocupar com a morte ou não, acredito que exista um instinto natural de sobrevivência no ser humano. Então até o fatídico dia, já livre de uma depressão antiga, eu seguia o meu caminho feliz e destemida como qualquer pessoa cuja vida não foi abraçada pela morte ainda seguia, pandemia e falecidos à parte. Quanta inocência.

Naquele dia, sofrendo mais por uma decepção amorosa do que pela pandemia, decidi colocar uma música suave e simplesmente me reconectar comigo. Eu tenho a sensação de já ter escrito sobre isso mil vezes. Poemas, contos, este ensaio… esse dia é como uma fumaça tóxica no meu organismo que eu venho há um ano tentando cuspir pra fora, para o mundo, porque se expandindo dentro do meu corpo, ela estava me sufocando. Aqui fora ela se dispersa, a história é lida aqui e ali, a fumaça continuará para sempre no mundo, mas talvez um dia já esteja longe o suficiente de mim para que não me incomode.

  O fato é que minha tentativa de reconexão com o universo resultou, de repente, em uma crise de ansiedade que, por ser algo completamente novo para mim, confundi com morte iminente. Coração acelerado, visão anuviada, sensação de desmaio, respiração entrecortada, os sons do mundo lá longe, cada vez mais baixinhos em minha mente e o pensamento insistente: “Então morrer é assim… mas que merda! Eu não queria…”

Obviamente, sobrevivi. O médico que me atendeu naquele dia disse que nenhuma das minhas funções vitais esteve em perigo real, que foi tudo só “sintomas da ansiedade”. Mas uma coisa sobre a crise de ansiedade que ninguém conta é que ela pode não te matar, mas ela certamente ensina o que é morte. Você sente na pele, nas veias, no coração. E crise de ansiedade é igual namorado decente: todo mundo pensa que já teve, até realmente ter um de verdade.

Depois daquele dia, eu não consegui mais estar em paz. Temia mais do que tudo, a noite. O pôr do sol, que é tão bonito em Porto Alegre, virou motivo de angústia para mim, porque quando o sol caía a noite vinha, e com ela, o medo aumentava.  A morte tornou-se uma presença física, uma donzela segurando meus ombros o tempo todo, assoprando meu pescoço por trás, arrepiando os pelos da minha nuca e sussurrando: “Um dia, um dia, um dia…”

A expectativa de vida no Brasil é de 76 anos. 76 anos correspondem a dois bilhões, trezentos e noventa e oito milhões, trezentos e setenta e sete mil e seiscentos segundos. E a morte, esse ínfimo espaço de tempo que leva a nossa mente, espírito ou alma para desconectar do corpo, não leva mais do que um segundo. É um piscar de olhos. 1 segundo de morte em 2.398.377.600 de vida. E é esse único “1” que define absolutamente tudo. Quem morre, quem fica, o mundo inteiro.

A morte existia agora. Logo agora, que pela primeira vez, minha vontade de viver era tão gigantesca. E eu não podia aceitá-la. A morte é o fim, ou o que? Ninguém sabe. Eu não queria não existir.

Mas eu já não existi antes, disse-me alguém sábio. Antes de nascer, todos nós não existimos. Já estivemos presentes na inexistência. Por algum motivo estranho, esse pensamento me reconforta. Não pode ser tão ruim assim. É apenas o não ser.  Então aos poucos, passei a aceitá-la.

Todos meus textos ultimamente falam sobre vida, embora pareçam falar sobre morte.  E depois desse ano de medos, incertezas e desejo pela vida, me resignei e entendi que sim, vou morrer. E quero muito morrer.

Um dia, deitada na minha cama. Com o braço da pessoa que eu amo, ainda viva, à minha volta. As fotos dos meus netos na mesa de cabeceira. E a morte que estivera calada durante tantos anos, assoprará novamente meu pescoço. Quero sorrir para ela dessa vez:

“Já estou indo.”


Julia Monteiro Moreira Rosiello é millenial paulista por nascença e porto-alegrense por escolha. Estudante de escrita criativa, mas me considero uma escritora desde que dobrava folhas de papel sulfite e chamava o resultado de livro. As palavras sempre foram meu refúgio e minha libertação interna – escrevo para que elas sejam livres também.


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