SOBRE DIFERENTES TIPOS DE EXPERIÊNCIA AUDIOVISUAL

Este breve ensaio é uma revisão de duas formas de representação: experiências comuns que se manifestam de diferentes maneiras, afim de esboçar um pouco do que pode vir a ser os limites e as possibilidades de cada uma.

Em Mitologia, Roland Barthes começa o livro descrevendo o catch francês, o que é, no mínimo, curioso. Catch é descrito por Barthes como um tipo de esporte de luta livre. Dois lutadores em um palco expressão suas emoções, lutam pela vitória. Para o catch pouco importa a verdade, pouco importa se a dor e o sofrimentos são sentimentos reais, pouco importa se a luta é real. Para o público o que importa é se os lutares conseguem representar emoções reais, sentimentos reais, sejam frustrações pela derrota, ou a euforia da vitória. 

São outras as experiências possíveis na produção audiovisual. Seja em um filme, uma série, uma animação ou o que for, o conteúdo audiovisual trabalha com a demonstração de informações interiores. Também se trata de representações, mas de representações do real. No livro Culturas Narrativas Dominantes: o caso do cinema, João Maria Mendes comenta a maneira como o cinema opera as réplicas da realidade, o que neste ensaio pode ser expandido para a produção audiovisual como um todo.

A questão para Mendes nesse livro é mostrar que a representação da produção audiovisual – do cinema, no caso dele, não é uma simples réplica da realidade que se mantém estável e única. As representações audiovisuais são ao mesmo tempo uma apresentação e idealização do mundo real em um processo simultâneo de três idades. Mendes faz referência a filósofos como Hegel e Heidegger para comentar esse processo: 1) a representação mundo em vista de sua melhora; 2) a materialização dos objetos ficcionais em objetos e lugares reais. Nesse ponto, Mendes fala principalmente dos parque temáticos, como o da Disney, para mostrar como a realização dos sonhos é possível ao público; 3) Finalmente a conquista, a realização da ficção no mundo real. Aqui se trata de viver efetivamente o que foi inicialmente idealizado.

Esse processo é comum e de fácil verificação, mas existem traços de variações que podem ser destacados pela recente ascensão das plataformas de streaming. O caso da segunda etapa, por exemplo, pode ser desconsiderado e a realização da ficção pode acontecer subjetivamente, i.e., pela “incorporação” de características de personagens pelo público e a tomada de discursos.

A experiência audiovisual por sua vez trabalha com a capacidade da produção de passar informações sem que o produto “pese”. A ideia é conseguir apresentar um universo completo em poucas horas, de contar a história de vida de um personagem em algumas poucas cenas e, parece ser essa de fato a característica por excelência do conteúdo audiovisual. Esse tipo de experiência não é apenas interior. Não se trata apenas de conseguir conhecer uma personagem, como pensa e o que deseja, mas de vivenciá-lo em sua própria situação. A experiência aqui é a de entender e simpatizar com a personagem em um processo de dupla representação: por um lado a produção que tenta a representação do real; do outro, o público, que se vê e assisti representado, seja por identificação ou idealização das ações das personagens.

É outro ainda o caso da experiência de jogador. Para comentar esta, um jogo foi escolhido e uma histórica precisa ser contada. The Last of Us – Part II, desenvolvido pela Naughty Dog e publicado pela Sony Interactive Entertainment, lançado oficialmente em 2020. A primeira parte dele foi lançada em 2013. O primeiro jogo foi um grande sucesso, já fazia algum tempo que a Sony não lançava um jogo com uma narrativa tão intensa e diversas novidades tecnológicas culminaram com na história. Em 2017, em um evento oficial da Sony, foi prometida a segunda parte do jogo. Desde então, a experiência de jogador começa.

Após vinte anos em pandemia, surge uma esperança: Ellie, a única humana imune a um vírus que faz qualquer infectado nocivo e mutante se expostos por longos períodos. Joel recebe a tarefa de leva-la a um grupo de resistência chamado Vagalumes que, contra a ordem comum, busca uma cura. Joel cumpre sua missão, matando diversas pessoas no caminho. O segundo jogo é uma história de vingança pelo que Joel fez e por sua lastimável morte.

A experiência do jogador que viveu a primeira história quase inteira na narrativa de Joel, que o viu morrer logo no início do segundo e passa a jogar principalmente com Ellie, seja no primeiro ou no segundo, seja um ou em outra, não é uma experiência audiovisual em que se tem uma dupla representação, como comentou Mendes. A experiência de jogador em ambas as narrativas de The last of us é a de vivenciar como espectador que obedece as decisões de outrem, como se uma consciência ali fosse criado e ao jogador fosse possível incorporá-la em um ambiente único e próprio, ainda que meramente como um corpo que serve de casca a outra consciência. É essa dinâmica que permite ao jogador vivenciar a experiência de espectador, de alguém que de algum modo assisti uma história ser contada e conhece os segredos das personagens sem necessariamente simpatizar, sem que goste ou concorde, sem sentir empatia ou coisa do tipo, mas apenas acompanhe, como um tipo de presença ausente na história.  Ambos os produtos se tratam e funcionam através da noção de representação como núcleo e ferramenta. Mas como são diferentes as experiências no produto audiovisual e nos jogos. A primeira permite intensa simpatia e identificação com personagens, com histórias e tramas. A segunda, sem muito foco nisso, permite a experiência de viver efetivamente cada etapa de uma trajetória, de um arco de perfil, mesmo que não se concordo com as decisões tomadas. Vivi mais de mil vidas antes dos meus vinte anos da minha própria e isso só foi possível, pois nasci em um mundo encharcado com essas muitas e magnificas histórias.


Allison Vicente é Estudante de Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e formado em Roteiro audiovisual pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESPE). Um novato roteirista que há muito tempo, no entanto, se apaixonou por histórias bem contadas, de apreciar, experimentar e vivenciar novas experiências. Seja um livro, uma série, um filme, uma animação ou um jogo, anseio sempre por novidades. Sou também alguém muito interessado pelo desenvolvimento das ciências no mundo, com especial foco e carinho nas Ciências Humanas e na linguística, o que parece casar bem com minha paixão por histórias.


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