O título desse ensaio se refere a um dos princípios mais importantes da educação Montessoriana, que acredita no potencial da criança para alcançar seus objetivos com o mínimo de ajuda do adulto. A “não ajuda” não quer dizer negligência, e sim observação, cuidado, e, principalmente, escuta. Aquela escuta que vem do corpo todo, que nos livra do ego adulto e nos permite entender aquele universo que se constrói na nossa frente.
Sou professora. Nunca pensei que seria. Em nenhum de meus planos de infância ou adolescência escrevi esse desejo nas estrelas, mas, de súbito, me vi arrebatada pela educação. Antes de despejar meus pensamentos sobre o valor da educação libertadora, gostaria de convidar você, leitor, para embarcar em um cenário comigo. Imagine que você é uma professora de ensino básico. Você não tem muitos anos de sala de aula, mas o suficiente para compreender as nuances que uma escola oferece. Certo dia, um estudante te pergunta: “Professora, você tem um cachorro?”. Se lembrando do pequeno vira-lata caramelo que divide seu apartamento com você, responde que sim e segue sua aula.
No dia seguinte, uma enxurrada de perguntas e acusações te cercam. Você, como professora, deveria saber o que pode e não pode ser dito em uma escola. E se os pais daquela criança não gostam de cachorro? E se ela é alérgica? E se ela prefere gatos? Onde está a sua sensibilidade, professora? Confusa com os questionamentos, você pergunta o que deveria ter sido feito. “Minta”, eles te dizem. Você, então, nunca mais menciona seu cachorro. Imagine, então, que alguns anos depois, essa mesma criança, agora adulta, está andando em um parque e se depara com a seguinte cena: um casal levando seu cachorro para passear. Enraivecida, ela confronta os dois, dizendo que o que eles estão fazendo ali é proibido, não se pode simplesmente ter cachorros. O casal, então, diz que as pessoas são acompanhadas por esses animais há anos, e o processo de adoção é simples e rápido.
Se coloque, então, no lugar desse adulto. Quais os possíveis caminhos que podem ser percorridos? E se ele sempre quis um cachorro? E se ele se lembrar daquela única vez que sua professora falou sobre o assunto e foi brutalmente silenciada logo depois? E se, com os anos, ele criou um imaginário falso sobre cachorros e agora não consegue desconstruí-lo? Quais sentimentos afloram? Tristeza, raiva, insegurança? Certamente nada de bom pode resultar dessa experiência. A educação libertadora não pretende privar a criança de sentimentos negativos, e sim ajudá-la a nomear, entender e processar todos esses sentimentos em seu próprio contexto de vida. Quando mentimos para as crianças, estamos inevitavelmente iniciando a formação de um ser humano inseguro, frustrado e com dificuldade para confiar. Se não nos sentimos acolhidos pela família e nem pela escola, o que resta?
Paulo Freire foi um grande defensor da educação como ferramenta de libertação social. No Brasil atual, podemos medir a importância de seus ensinamentos através do quanto seu trabalho é censurado pelo conservadorismo brasileiro. A elite não quer uma população pensante e autoconfiante. A elite nem sequer se interessa que seus próprios filhos sejam despidos de preconceitos; afinal, manter o status também depende de um cruel alinhamento de pensamentos e sensação de superioridade. Trabalhar com educação nos últimos anos tem sido, em simultâneo, minha maior frustração e maior alegria.
Meu diploma em Letras me habilitou para dar aulas de Português e Inglês, literaturas, gramática, morfossintaxe e todas essas variáveis linguísticas e literárias. Entretanto, entendo que, se minha função como educadora está restrita em páginas de livros e conjugações verbais, quer dizer que falhei em algum lugar. Recentemente, quando estudava mais sobre o método Montessori – que está presente logo no primeiro parágrafo dessa divagação -, me deparei com a compreensão do conceito de “papel cósmico”. O papel cósmico nada mais é do que aquilo que está além do contrato formal, sendo nosso objetivo final. “O contrato é nosso papel individual, e é o que garante o sustento de nossas famílias. O papel cósmico é o que garante o equilíbrio de todo o universo.” 1 Me agrada pensar que nossa carteira de trabalho não define, de fato, nosso propósito. Ao mesmo tempo, me entristece que estejamos sendo lentamente privados de nosso papel cósmico por capricho de alguns. Talvez por isso sintamos o mundo tão desequilibrado ultimamente.
Gostaria de terminar esse texto com outro convite, para professores e não professores. Todos somos educadores. Todos somos responsáveis pela vida e o desenvolvimento do universo. Pratique a paciência ao absorver o mundo, pratique a paciência para não interromper ninguém que está no processo de aprendizagem. Passe a ter menos pressa para chegar ao destino, e mais carinho apreciando o caminho. Todos precisamos de ajuda. Ajuda para pensar, agir, modificar e criar sozinhos. Ah, e lembre-se: você não precisa e nem deve esconder os seus cachorros.
Gabi Guarabyra é atriz, diretora, dramaturga e professora. É pós-graduanda em Gênero e Sexualidade pela FACED-UFJF e compartilha frentes de trabalho teatral no Coletivo Feminino e no Núcleo Prisma.
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