Dez anos não são dez dias

Estamos entrando no mês de agosto, e no próximo dia 20 a Bodoque completa 10 anos de história. Eu sei que esse deveria ser um texto institucional, contando como foi a nossa caminhada ao longo desses 10 longos anos, destacando grandes desafios superados e o tanto de coisa boa que conquistamos até aqui. Mas, apesar disso, esse é um texto sobre repetição. Espero que faça sentido.

Um dos conceitos fundamentais da psicanálise é a repetição. A repetição faz com que o sujeito seja condicionado, contra a sua vontade, a recriar novas edições de acontecimentos traumáticos. Isso, entre outras coisas, teoricamente explica porque algumas pessoas estão sempre entrando em relacionamentos onde são mal tratadas. Muito embora esse conceito seja uma teorização sobre uma estrutura base de diversas formas de sofrimento psíquico, Freud a teorizou não para descrevê-la, mas sim para encontrar alternativas que pudessem, de alguma maneira, minimizar a dor. Nesse sentido, o analista é o sujeito que vai, através do procedimento clínico, encontrar as brechas da linguagem onde se escondem as experiências para as quais não encontramos palavras. É uma tentativa de nomear, de fazer com que o indizível seja, de alguma maneira, representado.

Por outro lado, em termos gerais, a repetição pode ser entendida de muitas outras formas, sobretudo tratando de comportamentos, práticas e representações. Na cultura popular encontramos expressões como “figurinha repetida não completa álbum”, que aponta para uma visão onde a repetição não deve ser buscada, ou seja, ela não frutifica, não acrescenta, não cria novos movimentos. Ademais dessa visão desapegada sobre a repetição, encontramos, em frases de grandes autoras, pensadores e pensadoras inúmeros escritos sobre a repetição, ou que fazem alguma referência sobre o fenômeno. Para não deixar de citar um exemplo, podemos nos lembrar da célebre frase de Marx: “a história se repete: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” Além de pensadores e ditos populares, existem aqueles que gostam de dar ênfase à repetição como uma etapa fundamental para o aprendizado, algo essencial para o desenvolvimento humano. Alguns pensamentos à respeito, inclusive, se transformam em frases que evocam profunda sabedoria e esclarecimento, como o provérbio árabe: “A repetição deixa sua marca até nas pedras.” Na mitologia, Sísifo enganou a morte repetidas vezes, e teve como castigo a eterna repetição, condenado a rolar morro acima uma rocha cujo peso, em dado momento, se tornava impossível de suportar, fazendo com que o personagem recomeçasse o trabalho de elevá-la desde o princípio. São inúmeros os pensamentos e lições que podemos tirar da ideia de repetição.

Quando paro para pensar no papel da Bodoque enquanto instituição cultural atuante desde 2012, não consigo encontrar uma forma de expressar o que penso a respeito, pelo menos, não sem me repetir. Parece algo meio ensaiado para um texto que anunciou em suas primeiras linhas que esse não seria o seu tema, mas é essencialmente verdade. Eu não sei dizer se estamos fazendo algo realmente bom ou relevante para as movimentações culturais locais, (ou onde mais nossas ações alcançarem). Também não consigo encontrar uma razão concreta para que mantenhamos uma estrutura tão onerosa sem, muitas vezes, garantir o nosso próprio sustento vindo do trabalho que realizamos. Tenho a impressão de que sou apenas um mero escravo da repetição. Na falta de encontrar meios e condições para expressar aquilo que fazemos, repetimos o ato de o fazer incessantemente. A prática repetida de nossas ações, comunica, de alguma maneira, aquilo que não conseguimos expressar. Nós não nos sentimos à vontade diante da iminente e irresistível vontade de desistir.

Freud construiu uma teoria contundente a partir da clínica analítica. Tenho para mim que talvez estejamos construindo algo que faça sentido aos olhos do tempo, afinal de contas, dez anos não são dez dias.

Referências:

NETO, Esperidião Barbosa. O conceito de repetição na psicanálise freudiana. Universidade Católica de Pernambuco. Dissertação de mestrado, Recife, 2010.

VERÍSSIMO, Danilo Saretta. A crise cultural da atenção: repetição maquinal e choque de imagem. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/pusp/a/Q3XvSDXbYqgM6FsdtsXgGcs/?lang=pt> acesso em: 31/07/2022.


Frederico Lopes é artista, curador e educador, graduado em artes pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em gestão cultural pela FAGOC. Atuou no setor de curadoria e expografia do Museu de Arte Murilo Mendes de 2013 a 2017. Integrou a equipe de implementação do Memorial da República Presidente Itamar Franco, onde também trabalhou na curadoria e na coordenação da divisão de educação até 2021. É fundador da Instituição Cultural Bodoque Artes e ofícios (2012), da Revista Trama (2019), do Museu de Artes e Ofícios de Juiz de Fora (2020) e do Laboratório de Criação em Artes Visuais e Design (ARTELAB – 2020). É membro do Conselho Curador do Memorial da República Presidente Itamar Franco e suplente da vice-presidência do Conselho Municipal de cultura na cadeira de artes visuais. Também atua como designer na editora Harper Collins.



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