Performace e a Sociedade do Cansaço

O Fracasso na Sociedade do Desempenho 

A linguagem da performance é, sem sombra de dúvidas, um campo inesgotável de exploração e, neste sentido, contribui significativamente para a valorização da arte contemporânea, uma vez que é fruto de seu tempo. Para além, deve-se compreendê-la enquanto linguagem e história, capaz de permear campos expandidos no tocante à arte devido sua intensa plasticidade. 

O corpo torna-se eixo central, muitas vezes numa exposição radical, dado o fato de que o corpo é identidade, ou melhor, processo de construção de identidade, e que desde o início sempre esteve muito aberto aos dispositivos tecnológicos à medida em que estes surgiam enquanto elemento característico da identidade da sociedade pós-moderna.  

Ao romper com a ideia de representação, característica predominantemente oriunda das artes cênicas e que Eleonora Fabião (2013) intitula programa performativo, a perfomance passa a dar espaço à apresentação do real, conferindo à grande parte das obras um caráter autobiográfico (MELIM, 2008, p. 52), suscitando afetações e incômodos que atravessam o espectador quando frente ao “objeto” de arte. Por esta senda surge “I’m too sad to tell you” (Estou triste demais para te contar) de 1971, concebida pelo artista holandês Bas Jan Ader, na qual o artista grava a sí mesmo, em filmagem super 8, chorando (em silêncio) durante 2 minutos e 13 segundos.  

É uma obra que assim como inúmeras obras de arte contemporâneas nos provoca ao menos um questionamento  inicial: qual a proposta do artista?  No entanto, o exercício de se debruçar sobre a prática da performance e o quê produzem seus agentes nos leva a entender que, nas palavras de Fabião, “Em geral, performers não pretendem comunicar um conteúdo determinado a ser decodificado pelo público mas promover uma experiência através da qual conteúdos são elaborados.” (FABIÃO, 2013, p. 2) 

O caráter híbrido da perfomance 

Uma das principais características da perfomance é a impossibilidade de reduzí-la a uma simples definição, uma vez que definí-la seria retirá-la de seu caráter múltiplo, plural. No que diz respeito às linguagens da arte, ela faz uso de uma grande variedade destas, tais quais o audiovisual, caso do registro da performance aqui em pauta, a escrita, a leitura e a capacidade de operar a justaposição, a colagem, o registro fotográfico e a documentação.  

A perfomance lida com a tentativa de materializar o invísivel, uma tentativa de materializar a arte conceitual. Tendo o corpo como eixo, busca muitas vezes reenserí-lo na sociedade ao lidar com o apagamento de singularidades e identidades, reestabelecendo relações com o sensível e promovendo o cultivo de sí. 

Outro elemento importante para se pensar a arte da perfomance é o espaço em que é produzida. Devido ao uso das novas mídias, é possível performar em ateliês, assim como Brunce Nauman o fez, mas que também exerce grande influência na relação com o espectador ao fazer uso do espaço público, de galerias e museus, ressignificando o lugar – ou possíveis lugares – da arte na contemporaneidade. Nesse sentido, encontraremos o seguinte esclarecimento nas palavras de Christine Greiner: “A lei do gênero e seus respectivos suportes passa a ser cada vez mais desestabilizada.” (GREINER, 2013, p. 17) 

A performance e a sociedade do cansaço 

De acordo com o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em sua aclamada obra A Sociedade do Cansaço (2017), vivemos em uma modelo de sociedade que em nada nos beneficia, pelo menos não no que tange as afetações psicológicas das pessoas, levando ao adoecimento via depressão e demais doenças psicossomáticas. Segundo o autor, “A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade.” (HAN, 2020, p. 29)  

Tamanho é o sofrimento desse indivíduo que se encontra inserido nesse novo modelo de vida que ele passa a ser o que não é, ou seja, inicia-se um processo de ausência do Ser. Assim, o esgotamento psicológico torna-se em grande medida um esgotamento da essência de sí. Ader confere enorme peso à sua obra ao se retratar em um momento de fragilidade absoluta, no qual ousa mostrar uma faceta que para a sociedade do desempenho é motivo de atribuição à falta de persistência, determinação, força, positividade etc. A perde da fé, não em Deus ou em quaisquer figuras míticas, mas em sí próprio, à sua realidade diante das mazelas dessa sociedade, frutos da opressão constante à qual somos submetidos. 

Figura 1. I’m Too Sad to Tell You, 1971 – Bas Jan Ader. Disponível em: <https://www.closeupfilmcentre.com/library/essay/i-m-too-sad-to-tell-you-about-i-m-too-sad-to-tell-you/> Data de acesso: 15 out. 2021 

Segundo Han (2020, p. 44) a perda de fé à própria realidade “torna a vida humana radicalmente transitória. Jamais foi tão transitória como hoje. Radicalmente transitória não é apenas a vida humana, mas igualmente o mundo como tal. […] Frente a essa falta do Ser surgem nervosismos e inquietações.” Diante disso, Ader logra êxito a estabelecer um exercício de “alteridade constante” (MELIM, 2008, p. 63) entre si próprio e o espectador, tamanha a sensibilidade com a qual opera o ato performático. Nesse ângulo, nas palavras de Schechner (2013), é possível compreender que “[…] não existe ação corporal sem crise, conflito, tensão, incompletude e, sobretudo, contaminações com o ambiente.” (SCHECHNER apud. GREINER, 2013, p. 14) 

Para a autora Paula Braga, “Na perfomance, a artista não está atuando um papel. É ela mesma, em espontaneidade e absoluta concentração no instante presente. Ela é seu próprio signo.” (BRAGA, 2021, p. 233) No tocante às questões de corpo e identidade, Kátia Canton nos diz que, “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. […] A identidade completamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.” (CANTON, 2009, p. 16-17) 

Temas como essa frgamentação da identidade, fraqueza, fracasso, tristeza e depressão são frequentes na obra de Ader, que por vezes, coloca o espectador diante daquilo que as sociedades dos séculos XX e, predominantemente do século XXI – ato que nos leva a entender a pertinência de seu trabalho até os dias de hoje – querem que ele enterre em si ao promover a perpetuação de uma positividade excessiva e que massacra aqueles que não atendem a esse formato de vida. 

“O caso Bartleby”: perfomance e literatura 

Em dezembro de 1853, o escritor, poeta e ensaísta estadunidense Herman Melville publicou a obra literária Bartleby, o Escrivão. Para Byung-Chul Han, a sociedade descrita por Melville é um retrato da sociedade disciplinar, na qual um escrivão, Bartleby, adoece gravemente por estar inserido em um ambiente de trabalho onde as relações humanas são praticamente nulas. Segundo Han, “Ele não suporta o peso do imperativo pós-moderno, de começar a abandonar o próprio eu.” (HAN, 2020, p. 62) devido às práticas repetitivas e incessantes do mundo corporativo e à atmosfera hostil e sombria.  

Desta forma, torna-se possível aproximar a perfomance de Ader da figura de Bartleby, posto que ambos, inseridos nessa sociedade de desempenho,  são espelhos de uma estilo de vida que gera “[…] um cansaço e esgotamento excessivos. Esses estados psíquicos são característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade.” (HAN, 2020, p. 71) 

Ader, em seu ato performático, denuncia esse mundo com um ato próprio da condição humana: o choro. Esse choro o impede de “dizer” algo para nós, os espectadores, mas na ausência das palavras, a ação em sí, elemento predominantemente presente na performance, o faz pelo artista. Neste momento, não há a necessidade de falar, apenas fazer. Ao passo que Bartleby prefere “não fazê-lo” (o personagem repete incessantemente a frase “prefiro não fazê-lo”) e o faz por resistir ao fazer laboral, Ader prefere fazê-lo a dizê-lo

Conclusão 

A arte da performance em suas mais diversas manifestações e linguagens serve como dispositivo de intensos diálogos entre obra e espectador, materializando o invisível e dando forma à questões íntimas do âmago do ser humano.  

Nessa perspectiva, o sofrimento e a tristeza surgem como frutos da sociedade do cansaço, levando o sujeito pós-moderno ao esgotamento psíquico em uma sociedade que, segundo Canton, “[…] acha que o sofrimento não é normal, não é natural; natural é ser feliz e alegre, 24 horas por dia. O corpo nunca foi tão exigido.” (CANTON, 2009, p. 41). O artista Bas Jan Ader exprime essas questões em seu trabalho e apresenta sua performance no campo das artes como nons diria Paula Braga (2021) “[…] desestabilizadora para o espectador, como um sonho que desloca elementos de seus contextos usuais e revela um fundo de verdade e de sejo que não ousávamos abordar conscientemente.” (BRAGA, 2021, p. 222) 

Conclui-se, portanto, que a arte exerce força capaz de estabelecer distintas associações, denunciar injustiças e insatisfações e expressar o não convencional; ir contra as expectativas da sociedade de desempenho. Por este ângulo, cabe ao exercício crítico, tal qual como este que se encerra, “[…] responder às demandas de sua época, adaptando-se sem maiores temores e com um mínimo de ousadia, aos espaços que lhe são concedidos, procurando abrir e disseminar, de dentro destas regiões de ressonância, novos espaços de produção e circulação para a arte.” (OSÓRIO, 2005, p. 13) 

Referências Bibliográficas 

ALICE, Tania. Diluição das fronteiras entre linguagens artísticas: a performance como (r)evolução dos afetos. Catálogo Nacional, [S.l.], 2013. Disponível em: <http://taniaalice.com/wp-content/uploads/2012/11/palco2014_Artigo_Tania.pdf>. Acesso em: 15 out. 2021. 

BRAGA, Paula. Arte Contemporânea: modos de usar. São Paulo: Elefante, 2021. 

CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 

FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo-em-experiência. Revista do LUME. Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP. nº 4, dez. 2013. 

GREINER, Christine. A percepção como princípio cognitivo da comunicação: uma hipótese para redefinir a prática da performance. In: RENGEL, Lenira; THRALL, Karin (org.). Coleção Corpo em Cena. Volume 6. Guararema, SP: Anadarco, 2013, p. 11-35 

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. 

JACQUES, Juliet. I’m too sad to tell you about I’m too sad to tell you. CLOSE-UP. [S.I.] Disponível em: < https://www.closeupfilmcentre.com/library/essay/i-m-too-sad-to-tell-you-about-i-m-too-sad-to-tell-you/> Data de acesso: 15 out. 2021. 

MELIM, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 

OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 

Bibliografia Complementar 

GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do Futurismo ao Presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 

GOMPERTZ, Will. Isso é arte?: 150 anos de arte moderna do impressionismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 


Lucas Rocha é artista visual, professor de idiomas, graduado em Artes Visuais –
Licenciatura, pós-graduado em Docência em Literatura e Humanidades, pósgraduando em História da Arte: teoria e crítica e aluno especial do programa de
mestrado em Estudos Culturais na EACH-USP. Atua na área da educação há 7 anos
com uma abordagem pautada nos estudos decoloniais, culturais e literários, bem
como temas transversais e uma proposta pedagógica plural. Tem como principais
linhas de pesquisa crítica de arte, filosofia da arte (estética), estudos culturais e
antropologia da arte.



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