Iluminado

Quando nasceu, foi recolhido a tempo de uma caçamba, antes que fosse despejado com o entulho no caminhão do lixo. Levado a um orfanato, lá permaneceu enquanto outras crianças eram enviadas para seus lares adotivos. Casais recusavam a serem pais daquele menino que jamais sorria. Chamavam-no pelo nome que lhe deram lá dentro. Reinaldo. Só Reinaldo. Os adultos que tentaram ser mães e pais de Reinaldo acenando convites para brincar, apenas conseguiam uma negativa imóvel, uma apatia perfurante. Os abraços que conseguiu pouco ficaram, pois os repelia. Pouco chorava. Espantava as outras crianças com beliscões e recebia paciente todas as sovas que lhe davam. O faxineiro Pedro, por outro lado, ensinava-o às escondidas a pegar queijos, refrigerantes, chocolates e salgadinhos da cantina, por uma portinhola de onde caía o despejo do lixo diretamente na caçamba de entulho do orfanato. Pedro levantava Reinaldo, que se equilibrava em cima dos cestos de lixo da caçamba, para que ele subisse na portinhola e entrasse na cantina. Ganhava um chocolate como pagamento. Naquele orfanato, viu quem mandava e quem obedecia. E ele sempre tinha que obedecer. Principalmente do Pedro, se abusava de demorar na cantina, tomava uns tapas. 

Cresceu até ter idade suficiente para ser dispensado por Pedro depois que arrumou uma menina franzina no seu lugar. Estudava com professoras, aprendeu a contar, ler avisos, espiava laudos periciais.  Nada promissor por hora. Ele principalmente se dedicava ao estudo do dia a dia das pessoas que entravam e saíam, a troca dos turnos, o claviculário, a distração dos vigias dos portões daquele lugar que o separava do mundo. Fugiu. A cidade se abriu em sua nova morada, o teto nas marquises, o passeio público dos pedestres em corredores sem fim, as praças como seu quintal e sua selva, aprendeu a ficar na porta da padaria para filar um pingado. E no resto do dia, alguma pedra. Encontrou outras crianças, algumas também sem sobrenome, para aprender o abc da navalha e o manual de sobrevivência das ruas. Roubou, fumou, cheirou, apanhou até voltar a um reformatório. A cidade fechada e distante para ele, perambulava pra lá e pra cá entre as paredes que delimitavam seu espaço. Seu nome agora era um número, o 74. 

Mais uma vez teve que observar, em silêncio e aguentando as sovas no lombo, o ir e vir dos que conseguiam atravessar as portas e abrir os cadeados. De lá, escapou em meio ao incêndio que provocou com outros internos. Dessa vez seguiu para a favela, empinou pipa, entregou mercadoria, cumpriu ordens, ganhou outro nome batizado no tráfico. Virou Rei. Montou uma rede, exterminou concorrentes, passou a mandar, colecionava mulheres e as novidades dos comerciais de televisão. Mesmo sem sobrenome, seu apelido ecoava nos pancadões e nos telejornais policiais. Virou lenda. Reuniu admiradores, bajuladores, traidores. Foi quando numa emboscada, uma .380 alojou um projétil em sua coluna. Mais tarde, soube que algum súdito caguetou a hora e o lugar que o Rei estava mais vulnerável durante a entrega à sua ilusória invencibilidade, precisamente dentro de sua jacuzzi com Renatinha, que logo foi absolvida no esquema montado por milicianos e casou-se com um pastor que era o novo chefe do morro. Não mais andava, não mais reinava. Preso no hospital, na cadeira, na cadeia. Os comparsas, as mulheres e o dinheiro abandonaram-no. 

Anos mais tarde, após cumprir pena, estava novamente no lixo onde nascera. Faminto, via os restos de sua vida sendo esgarçados como a carcaça de um gato disputada pela urubuzada que ciscava na lixeira. Suas memórias, ainda que impressas com cicatrizes e tatuagens pelo seu corpo, desvaneciam-se junto com tudo que conquistou. O retorno àquela lixeira, encontrando-se na mesma indigência de antes, era a evidência que correu em desespero sem sair do lugar. Até então, exercia sua liberdade como bastasse estender sua vontade soberana sobre todos a seu redor. Suas decisões determinavam quem subia e quem caía, conforme alinhavam aos seus objetivos particulares. Se é ponta firme, tamo junto. Se vacila, ou cai fora ou o tambor gira. Escolhia, em geral, os mais obedientes, que vinham junto com os mais dissimulados. Somente agora soube que aqueles que o cercavam eram os urubus em torno do gato morto. Assim que foi preso, confiscaram seu império, seus contatos, seu legado cujo nome foi substituído por outro monarca na função.  

Sentenciado e agrilhoado a uma desgastada cadeira de rodas. Agora já não tinha mais mercado para expandir, nem patrimônio para zelar. Foi então que todos os ratos da favela o cercaram em um círculo, cujo centro era ele mesmo. De repente, o grunhido dos ratos cessou e todos eles se levantaram, juntando as patas dianteiras numa reverência. Em seguida as ratazanas espalharam-se pela favela e uma chuva de pétalas brancas caiu sobre sua cabeça marcada de cicatrizes. Ergueu-se da cadeira e voltou a andar. Um milagre caminhava pelas vielas da comunidade. Ele passou a curar doentes com as mãos e diziam que o projétil alojado em sua coluna o agraciava e lhe dava corpo fechado. Voltou a ser o rei, agora ungido pelo dom divino. Canonizado entre os miseráveis, foi às ruas seguido por uma multidão. Traficantes e milicianos iam pedir-lhe bênçãos. 

Novamente viu os rostos de admiração, bajulação e traição. Percebeu que carregava o fardo de um fascínio que atraía olhos sedentos de cobiça. Dispensou seus seguidores, ameaçando quem quer que o acompanhasse com terríveis maldições, atirando pedras contra quem chegasse perto. O povo recolheu-se às suas casas e logo o esqueceu, demonizando-o. Ele seguiu sua caminhada livrando-se das roupas até ficar completamente nu. Levado por policiais, da delegacia foi levado a um manicômio. Antes de morrer confinado na sua última prisão, escreveu na parede de sua cela: 

“Se não há freio que te detenha o passo, corra. Se não há mordaça que te cala a voz, grita. Se não há doença que te afrouxa o ânimo, gargalha. Nem as prisões escapam da sentença do tempo.” 


André Mellagi nasceu em São Paulo, onde vive. É psicólogo e escritor, publicou pela editora Patuá os livros de contos “Bricabraque” e “Interfaces”, além o do e-book de minicontos “Prosas Breves, Mínimas e Semifusas”. Colaborou com textos e fotos em diversas revistas impressas e digitais.



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