Demaquilante Histórico

Caímos do cavalo às margens de um Rio Ipiranga onde já não se pode banhar. O fato histórico, quanto mais se escava, mais se desmantela. Na tela heroica do grito da independência, abafou-se o eco das revoltas espraiadas pelo país, puseram pompa no batalhão de D. Pedro que, na realidade, estava mais para uma comitiva pantaneira, até o burro, animal escanteado pela ignorância, sofreu apagamento, porque o grito dado foi em riba dele. Bicho insofisticado que aguenta longos dias na labuta das viagens. E quanto ao povo? Quase não aparece na imagem replicada nos livros e no imaginário. Quando se trata de revolução, é o povo que dá o passo iniciático; não há bala de canhão que detenha a pressão popular, o desejo soberano de se libertar, a força premente que antecede datas oficiais, exemplo disso foi em Cachoeira, na Bahia, onde em 25 de junho1 a população se impôs contra os controles imperiais. Escravizados pretos e indígenas, marginalizados, todos juntos para enfrentar a sanha golpista no sonho, cada vez mais fato, da independência.

Outra participação da qual pouco dão veemência foi a de Urânia Vanério, uma adolescente de 13 anos que narrou em versos a invasão sangrenta e horripilante das tropas portuguesas a Salvador2, seus versos foram colados em muros pela cidade, lidos em voz alta, e a mensagem revelava a ação arbitrária da Coroa. Prova de que a poesia nunca foi palavra à toa. Também Maria Felipa, mulher negra que liderou o arraso dos portugueses na Ilha de Itaparica3; não me lembro dela nos livros de história no meu tempo de colegial. Por essas e outras que a reconstrução é contínua e atemporal.

Chegamos ao bicentenário da independência, essa senhora que a cada ano revela uma nova face, um outro lado, um novo significado. Quantos herois e heroínas invisibilizados ainda podem insurgir com seus brados retumbantes? O enredo vai se tornando mais relevante ao passo que a história aplica seu demaquilante. A verdade é que o pano de fundo dos grandes triunfos desse país é desenhado pelos braços fortes, mãos calosas, trabalhadeiras e mal pagas do povo, que ainda hoje procura sua libertação num país de acirrada divisão. A lista de injustiças das quais se erguem por clava forte são várias. No mapa brasileiro, um dos maiores países de exportação alimentícia, está imposta uma outra cartografia arbitrária e explícita, que é o mapa da fome. Os recordes de desemprego, a hecatombe da população negra, o negacionismo e a desesperança, pairam sobre uma nação na qual muitos jovens morrem antes mesmo de alcançarem sua independência. Escuta-se das margens bélicas os gritos de desespero dos que não estão seguros nem nas próprias residências. Em época de tanto filtro, não há mais maquiagem que suplante a realidade escancarada de uma luta inacabada. Neste decurso de duzentos anos ainda são necessários tantos avanços e reconstruções, que extrapolam a lauda. E justo em 2022, ano das eleições, a rivalidade é no próprio campo patriótico. Cada um grita o ‘salve, salve’ para seu idolatrado, entre discursos de amor e ódio, notícias falsas, fatos simbólicos, alguns pretendem usar a data da independência como defesa de que a história retroceda para exaltar a ditadura.

Nesse contexto, seria interessante um corretivo que apagasse essa esdrúxula rasura no tecido social. O aprendizado sobre a nossa história é crucial para que atrasos como esses sejam repudiados. Caso contrário, continuaremos como burros que protagonizam a lida, mas cedem as glórias aos cavalos.


1 1822

2 19 de fevereiro de 1822

3 2 de julho de 1823


Lucas de Matos é comunicador e poeta soteropolitano, atua na área da poesia escrita e falada desde 2014 por meio da produção de saraus. Produziu o Sarau Arte Livre (2014-2018), Sarau Quartas Poéticas (2019), Sarau do Benin (2021) e o seu mais recente projeto Sarau Pôr do Sol & Poesia que já passou por Salvador, Boipeba e Praia do Forte. Participou de Festas Literárias na Bahia e, virtualmente, em Moçambique e Colômbia. Recitou nas duas edições do programa Conversa Preta (2020/21 – TV Bahia, Rede Globo), e integra a ‘Antologia Terra’ com o poema ‘Falta’. Produz vídeo-poesia, e realiza atividade arte-educacionais em escolas e comunidades. 


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Um comentário

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