Imaginação e realidade entre família e lugares de memória no cinema  

O que as fotografias dos álbuns da nossa família revelam e escondem? Ao observar imagens de quando éramos crianças, normalmente temos a impressão de não apenas visitar lugares conhecidos pela memória, mas de encontrar novos pontos de vista, e isso também acontece quando vemos um mesmo filme por repetidas vezes. Por mais que um mesmo álbum de fotografias já tenha sido visto em vários momentos ao longo dos anos, é como se ele sempre pudesse apresentar algo que ainda não tinha sido percebido outrora. Apesar de o objeto em si não ter sofrido alterações físicas, para além das marcas do tempo impressas no papel, nós passamos por diversas mudanças, transformando o que está ao nosso redor e proporcionando outros olhares ao que conhecemos. Como a escritora, professora e psicóloga Bosi (2013) afirma, “pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes com as percepções imediatas, como também empurra, ‘descola’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência” (BOSI, 2018, p. 36).  

Ao pensar sobre as nossas próprias memórias, na tentativa de organizá-las obedecendo a uma determinada temporalidade, é possível perceber o quanto elas se cruzam e entrelaçam com outras experiências, como sonhos, ideias, frutos da imaginação, objetos, imagens, lugares, esquecimentos, afetos, perdas, momentos e até com as percepções e narrativas de outras pessoas. Afinal, como a memória pode ser construída por meio da sua subjetividade e das intrínsecas transformações temporais?  

Buscar informações sobre o que já passou não é apenas nostalgia e vai para além da ampliação do conhecimento histórico, visto que o passado “(…) não é mero conjunto de fatos que podem ser guardados, mas que constituem ao mesmo tempo uma peça fundamental na nossa vida e na nossa identidade” (SELIGMANN-SILVA, 2016, p. 50) e, além disso, “(…) as imagens também sofrem de reminiscências: mal esboçado — e por menos que seja intensificado ou deslocado, e portanto, inquietante —, o gesto faz subir uma memória inconsciente ‘das profundezas do tempo’” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 277).  

Segundo Seligmann (2013, p. 9), “Flusser descreve uma nova era na qual não nos contentamos mais em ler a superfície do mundo, mas sim aprendemos a produzi-la com imagens”. Portanto, é essencial analisar criticamente a situação política do país, entender o passado, não simplesmente como ponte para o amanhã, mas com o objetivo de perceber outras perspectivas possíveis para reorganizar a realidade atual, utilizando as imagens que fazem parte da memória e dos símbolos do imaginário coletivo: “cada história é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta etc.; essa dinâmica 

ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos” (BENJAMIN, 1987, p. 13).  

Se a memória é uma ilha de edição de imagens, e o cinema também lida com a montagem de narrativas, é importante analisar como a ficção e o documentário nacional podem contribuir na construção da história do país. Ao ouvir uma história ou assistir a um filme, diferentemente da transmissão de informação, as cenas e os relatos são passados para além da recepção de um acontecimento: “integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila” (BENJAMIN apud COSTA, 2010, p. 107).  

A cineasta Agnès Varda trabalha com uma diversidade de estratégias e técnicas de narrar e fazer cinema, que mesclam as fronteiras entre autoficção e autobiografia, reunindo elementos documentais e ficcionais, por meio de aspectos do cotidiano, de forma lúdica e criativa. Em seu filme As Praias de Agnès (2008), Varda utiliza fragmentos de sua memória para representar as histórias de sua vida e o caminho percorrido como artista no universo audiovisual. Logo no início do filme, ela se coloca no “papel de uma velhota, roliça e tagarela, que conta a sua vida” para explicar que, apesar de preferir filmar outras pessoas que a interessam, dessa vez ela vai falar de si e, com isso, nos diz que “se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens, mas se abrissem a mim, encontrariam praias”. Por meio dos espelhos organizados pela praia, não vemos apenas as ondas, o céu e os participantes que ajudaram na montagem do cenário, mas também o olhar de Varda para o mundo à sua volta.  

Varda afirma que as memórias são como areia em sua mão, pois enquanto guarda algumas, outras se esvaem e que, assim, a praia funciona como um dispositivo ou um “fio condutor”. Ela diz que “não tem nada a ver com nadar, surfar ou velejar. É o prazer de observar a praia, o que significa também ver o céu e o mar, e se você for em um horário diferente, pode estar com uma luz e um clima diferentes, pode estar branco ou plano” (tradução nossa)1, gerando a reflexão de um espaço que está em uma mudança mais amiúde, que é aberto a outros olhares e a novas possibilidades.  

Por meio de cenas híbridas entre o documental e o ficcional, que estão constantemente em trânsito na obra audiovisual de Agnès Varda, perpassando o individual e o coletivo, a inconstância do mar se torna protagonista: “o mar é o indeterminado, apenas em  

1 No original: “(…) This has nothing to do with swimming or surfing or sailing. It’s the pleasure of watching the beach, which means watching the sky and the sea, and if you go at a different time, it can be different light and weather, it can be white or it can be flat” (WILLIAMS, Richard. Agnès Varda: ‘Memory is like sand in my hand’. The Guardian, [S. l.] , 24 set. 2009). Disponível em:  

https://www.theguardian.com/film/2009/sep/24/agnes-varda-beaches-of-agnes . Acesso em: 29 jun. 2022. 

sua enganosa superfície pode perceber-se certa ilusão de determinação, de ritmo, de temporalidade, como no suceder das ondas. De resto, o mar é atemporal. E, talvez, espaço sem tempo” (TRÍAS, 1976, p. 224 apud HEYNEMANN, 2019, p. 163). Sobre isso, há uma parte do filme em que Varda narra em voz over que “o tempo passou e passa, exceto nas praias que não têm idade” (informação verbal).  

Em um enquadramento plongée, no qual a câmera foca principalmente na palavra que Varda escreve à beira do mar, há essa cena em que a diretora fala sobre a mudança do seu nome. Logo após escrever “Arlette”, as ondas vêm e apagam os traços das letras, deixando quase nenhum rastro na areia e, ainda assim, marcando os seus vestígios na imagem, enquanto ela fala em voz over que o trocou por “Agnés” quando completou 18 anos.  

De acordo com as psicanalistas Lucia Castelo Branco e Maria Fernando Machado (2017), Win Wenders (2013) afirma que a câmera é feito um olho que tem a capacidade de ver o passado e o futuro ao mesmo tempo, pois realiza fotos para frente e, para trás, faz registros vagos de sombras, abrigando então o sujeito em sua sombra.  

O filme é repleto de espelhos, reflexos, fotografias, lugares de memória e imagens de arquivo. Em um enquadramento de primeiro plano, no qual inicialmente é apresentada uma foto de Varda quando ainda era criança, logo depois a câmera registra a mão dela retirando essa foto e olhando para o seu rosto atual, que é refletido e emoldurado pelo espelho. Nessa cena, ela reúne e expõe diversas fotos da sua família e da sua infância, as firmando na areia da praia, em meio à vegetação do ambiente, quase como uma instalação, enquanto fala sobre esse período.  

Podemos observar a presença de Varda para além dos espelhos e registros fotográficos: o seu corpo está presente na troca de diálogos, entrevistas, encenações, na beira do mar, na terra, no barulho das ondas, no olhar, nos objetos e também em sua narração que, assim como o mar, não obedece a uma linearidade espacial ou temporal, e se encontra constantemente entre o ir e vir. Sobre essa infinitude presente nas praias e nas imagens, Branco e Machado (2017) nos lembram que Lacan (1987) estabelece que:  

É do encalço deste para-além, que não é nada, que ele [o sujeito] volta ao  

sentimento de um ser consciente de si, que é apenas seu próprio reflexo no mundo  

das coisas. Pois ele é o companheiro dos seres que estão aí diante dele, e que, com  

efeito, não sabem que são (LACAN, 1987, P. 281 apud BRANCO; MACHADO,  

2017, p. 159).  

Após ver algumas fotos de quando era criança, ao som do barulho de ondas, e dizer que a sua infância não a serve como uma inspiração, Varda narra “sonho com esta 

criança com roupa de banho listrada que também usava esta outra, com alças”, se referindo a imagens de si quando pequenina na praia. Logo depois o plano é cortado para mostrar duas garotas que vestem o figurino semelhante ao das fotografias e de sua narração, como se o cenário do documentário fosse tomado por uma encenação teatral. Com isso, Varda entra em cena com uma expressão surpresa, ao presenciar as crianças representando uma parte de suas lembranças da infância, e se questiona se a reconstituição dessa cena poderá remontar o momento que já passou, afirmando que o cinema é feito um jogo para ela.  

Além de tentar retroceder o passado por meio da recriação dramatizada de recordações e momentos, e da visita a diversos lugares, o filme também traz vários trechos de outras obras audiovisuais realizadas pela diretora ao longo da sua vida, mesclando narrativas e tornando as fronteiras entre autobiografia e autoficção mais fluidas.  

A cineasta realmente joga com diferentes artifícios, estratégias e linguagens, misturando histórias pessoais, artísticas e profissionais e, assim, apresenta memórias que estão sempre em movimento, sendo passíveis de novas interpretações. Dessa forma, Liliane Heynemann (2019) explicita que, para Rancière (2012), as imagens de arte são “dessemelhanças” e que, assim, nem todo visível produziria imagens e há imagens que aparecem sob a forma de palavras.  

A trajetória artística de Agnès Varda sempre prezou muito por um olhar para o outro, apresentando pessoas comuns, elementos do cotidiano e espaços públicos, mas também sempre incluiu estratégias e recursos ficcionais em seus documentários. Em as Praias de Agnès, é possível perceber isso de forma ainda mais potente na cena que mostra algumas pessoas montando um cenário que representa um circo e, logo em seguida, vários trapezistas atuando na praia, relacionando essas imagens não a um fato que aconteceu em sua vida, mas puramente como um elemento de imaginação, fabulação e fantasia.  

Segundo Helena Cruz (2021), Agnes remonta e reconstrói suas lembranças ou os acontecimentos que presenciou por meio do recurso da recriação e, ainda, “acessa a dimensão de porosidade entre os gêneros cinematográficos. Para além da reconstrução, ela também materializa situações que perduram na dimensão do pensamento e, portanto, tratam-se de coisas que nunca existiram de forma factual” (CRUZ, 2021, p. 17). Sobre a questão do que é falso ou verdadeiro no documentário, Deleuze (2018) explicita que a oposição ao real não é a ficção, mas a função de fabulação, que potencializa a criação de memórias e lendas por meio de imagens e narrativas no cinema. Assim, Gilles Deleuze (2018) declara:  

O que o cinema deve apreender não é a identidade de uma personagem, real ou  

fictícia, através de seus aspectos objetivos e subjetivos. É o devir da personagem 

real quando ela própria se põe a “ficcionar”, quando entra “em flagrante delito de  

criar lendas”, e assim contribui para a invenção de seu povo. A personagem não é  

separável de um antes e de um depois, mas do que ela reúne na passagem de um  

estado a outro. Ela própria torna-se outro, quando se põe a fabular sem nunca ser  

fictícia. E, por seu lado, o cineasta torna-se outro quando assim “se intercede”  

personagens reais que substituem em bloco suas próprias ficções pelas fabulações  

próprias deles. Ambos se comunicam na invenção de um povo (DELEUZE, 2018,  

p. 218).  

Varda alinhou espaços nos quais viveu com documentos, registros, colagens, fotos em stop motion, interpretações, vinhetas, trechos de seus filmes passados, conversas, lacunas, reflexões, e imagens de arquivo na tentativa não somente de regressar ao ontem — inclusive quando ela anda de costas e para trás em várias cenas — mas também de criar novas imagens para o hoje e o amanhã, narrando e compartilhando outras histórias. Por meio de suas memórias, ela veleja para além da autobiografia, da nostalgia e do autoconhecimento, explorando outros horizontes para o cinema e o fazer artístico.  

Ao mostrar as transformações de espaços com o passar do tempo, compartilhando imagens antigas e atuais, Varda também nos diverte ao brincar com a troca e adição de alguns detalhes, como na cena em que a estátua do Leão Beldford, no centro do bairro em que vivia, é retirada do monumento e, no lugar dela, aparece a sua gata de estimação em tamanho gigante, Zgougou, que também é a mascote e o logotipo da marca de sua produtora.  

Por meio da obra Praias, conhecemos detalhes da vida pessoal de Agnès, as cidades onde morou, seus relacionamentos afetivos, as pessoas e os lugares que a abraçaram ao longo dos anos, fragmentos da história de sua família, suas experiências profissionais, o seu amor e o luto por Jacques Demy, suas formas de pensar e fazer cinema, além de presenciarmos momentos de vulnerabilidade em momentos que a emocionaram diante das gravações e do trajeto percorrido.  

Tendo em vista que “a memória não é sonho, mas trabalho” (VON SIMSON, 2003, p. 16) compartilhar diálogos e narrativas é uma forma de reunir espaços históricos e culturais e, dessa forma, enxergar outros horizontes e dar passos mais sólidos em conjunto. Como afirma von Simson:  

(…) a memória compartilhada é tanto forma de domar o tempo, vivendo-o  

plenamente, como empuxo que nos leva à ação, constituindo uma estratégia muito  

valiosa nestes tempos em que tudo é transformado em mercadoria e tudo possui  

valor de troca. (…) Nesse processo são utilizados o que chamamos de “óculos do  

presente”, para reconstruir vivências e experiências pretéritas, o que nos propicia  

melhor compreender os problemas do presente e pensar em bases mais sólidas e  

realistas nossas futuras ações. (VON SIMSON, 2003, p. 16)  

Apesar de haver algumas diferenças e barreiras entre ficção e documentário, estas linguagens não são oponentes e, muitas vezes, estão presentes nos filmes de forma 

híbrida. Dessa forma, NICHOLS apud COSTA (2005) afirma que a definição da linguagem documental é sempre relativa ou comparativa, sendo definida principalmente pelo contraste com filmes de ficção ou filmes experimentais e de vanguarda.  

Então, mesmo com suas particularidades, ficção e documentário se encontram no sentido de produzir narrativas: falar sobre o real também é criar uma história, pois “o real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível” (RANCIÈRE apud COSTA, 2012, p. 74-75). De acordo com apsiquiatra e escritora Natalia Timerman, autora do livro Copo Vazio (2021), toda obra ficcional tem algo de autobiográfico, visto que “a memória talvez seja um dos melhores exemplos de encontro entre real e ficção, porque ela é feita dessa amálgama”2.  

O quanto de lembrança e imaginação cabe em memórias que carregamos ao longo da vida? No curta-metragem de animação Vida dentro de um melão (2020), a realizadora Helena Frade registra momentos familiares por meio de materiais documentais, como fotografias e vídeos que ela havia feito de recortes do cotidiano na casa de sua família, e também por meio da poesia, fantasia, ficção e fabulação, utilizando bonecos e marionetes artesanais para se conectar às imagens já existentes, representar suas memórias pessoais e afetivas e, assim, inventar outras histórias.  

De acordo com Helena Frade (CRUZ, 2021), o curta reuniu alguns fragmentos que ela filmou de sua família, no período em que seus avós, seus pais e sua irmã viviam todos na mesma casa, no interior de Minas Gerais, durante a sua adolescência. Essas imagens foram revisitadas depois e, assim, ela resolveu fazer um filme baseado nesses registros, mesclando a realidade e a fantasia, em busca de reinventar as lembranças do tempo vivenciado, escrito, filmado, fabulado e reencontrado.  

Com isso, podemos nos lembrar do personagem Irineo Funes, do conto Funes, o memorioso, do escritor argentino Jorge Luis Borges (1944), que queria classificar todas as suas lembranças e “(…) não apenas se recordava de cada folha de cada árvore de cada morro, mas ainda de cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. (BORGES, 1944, p.106). De acordo com a pesquisadora Olga Rodrigues de Moraes von Simson (2019), em uma entrevista concedida ao Jornal da Unicamp3, se fôssemos tentar guardar na memória tudo o que vivenciamos, acabaríamos loucos feito o personagem Funes e, por isso, a  

2 Cf. MORAES, Bia. O fantasma de Natalia. Plural Curitiba, [S. l.], 14 out. 2021. Disponível em: https://www.plural.jor.br/colunas/ordem-caotica/o-fantasma-de-natalia/ . Acesso em: 9 mai. 2022.3 Cf. SALES, Roberta. Memória e o direito de esquecer. Jornal da Unicamp, [S. l.], 07 jun. 2019. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2019/06/07/memoria-e-o-direito-de-esquecer . Acesso em: 30 jun. 2022.  

capacidade seletiva é uma característica fundamental para manter o funcionamento da memória humana. É exatamente por meio dessa seleção, do pensamento e do diálogo com o esquecimento, que podemos construir uma memória mais eficaz que pode contribuir para o nosso futuro. Assim, ao exercermos a capacidade de pensar e não apenas armazenar, podemos entender mais o que vivenciamos para que, assim, seja possível compartilhar experiências por meio de narrativas que mesclam a realidade e a imaginação.  

Entre cenas de animação e imagens de arquivo, no curta-metragem Vida dentro de um melão (2020) há uma narrativa cheia de detalhes e frestas que dialoga com o mundo documental e ficcional ao mesmo tempo, em que é possível interligar o real e a imaginação do que aconteceu e do que poderia ter sido, por meio de uma fronteira indefinida que se faz presente na construção subjetiva de memórias, unindo a autobiografia e a autoficção.  

Talvez, no labirinto do passado, todos os caminhos, até os que não levam a uma saída definitiva, são uma possibilidade para observar o presente e o futuro com olhos mais atentos a partir do próprio caminhar.  

Com um trabalho artesanal, feito à mão de forma lúdica e criativa, Helena Frade utiliza a narrativa, contendo lembranças do dia a dia em sua casa, para lidar com a morte do seu avô e a carga emocional do luto da família, com o intuito de ressignificar a saudade.  

As personagens representadas por bonecos com fios de nylon, que ficam à mostra durante as cenas, como se pudessem modificar o espetáculo a qualquer momento, feito material de sonho, sintetizam as linhas não-lineares do tempo e das memórias, que se entrelaçam e tecem afetividades, “como labirinto do tempo, é também a linha que se bifurca e não para de se bifurcar, passando por presentes incompossíveis, retomando passados não necessariamente verdadeiros” (DELEUZE, 1985, p. 192).  

Apesar de mesclar imagens de arquivo e cenas de animação, utilizando técnicas e estratégias características tanto de de filmes ficcionais quanto de documentários, a realizadora argumenta que:  

Às vezes esses dois tipos de imagens podem até se confrontar, mas em sua maioria,  

elas se complementam. Acredito que a poetização e as livres distorções através da  

animação não deixam o filme menos verdadeiro ou menos relacionado a um real. A  

animação e as imagens de arquivo são só estratégias diferentes para falar das  

mesmas coisas: as memórias daqueles tempos, do cotidiano em família, da vida  

vivida com aquelas pessoas, a partir do meu olhar e subjetividade.4  

4 Cf. BLACK, Júlio. Curta de aluna da UFJF participa de festivais nacionais e internacionais. Tribuna de Minas, [S. l.], 17 dez. 2020. Disponível em:  

https://tribunademinas.com.br/noticias/cultura/17-09-2020/curta-de-aluna-da-ufjf-participa-de-festivais-nacionai s-e-internacionais.html . Acesso em: 11 mai. 2022. 

A partir das percepções, do olhar subjetivo e dos sentimentos de Helena, o curta de animação apresenta outras formas de ver as trivialidades do cotidiano que nos abraça: a casa de sua família se torna um espaço dentro de um melão, as personagens ganham bicos e asas feito passarinhos, algumas falas viram bordões e determinadas cenas são montadas em uma velocidade acelerada, dando a ideia de efemeridade dos dias e frequentes mudanças do tempo diante das memórias. A pluralidade das imagens resgatadas, construídas e fabuladas nos lembra que entre o real e a ficção há muito mais a ser enxergado, sentido e vivenciado.  

O filme Aquarius (2016), dirigido por Kleber Mendonça Filho, está em constante diálogo com o “velho” e o “novo”, entre o que está em pleno funcionamento e o que corre risco de ser esquecido ou apagado, por meio de objetos do cotidiano, flashbacks, músicas e especialmente por meio do imóvel em que Clara — uma jornalista aposentada que é interpretada, no primeiro ato do filme por Barbara Colen e, depois, pela atriz Sônia Braga — mora, o qual se encontra em um período de incertezas e mudanças entre o que já foi e o que pode vir a ser.  

Como ressaltam Montoro e Guercio (2018), o edifício Aquarius é parte de quem Clara foi e deseja continuar sendo, representando uma extensão de seu corpo, que a protege, abriga, acolhe e acompanha a sua jornada pessoal, afetiva e familiar: “o prédio, assim como a personagem, traz as marcas das lutas, dos prazeres, das perdas e dos ganhos, dos sabores doces e amargos experimentados por uma mulher que viveu sua vida sem culpar-se ou desculpar-se por ser quem é” (MONTORO; GUERCIO, 2018, p. 10)  

Após alguns planos-detalhe nos quais são mostrados objetos, como vinis, cds e vídeos cassete, há uma cena de entrevista em que a jornalista questiona se Clara só ouve músicas no “estilo antigo”, enquanto já há tantas outras ferramentas tecnológicas que fazem parte da rotina das pessoas. Então, Clara tenta explicar à jornalista mais sobre a sua relação com o tempo e o porquê de colecionar discos antigos, mesmo já havendo dispositivos de áudio mais modernos, devido à memória e história própria que eles guardam:  

Eu gosto de tudo, tá certo? De MP3, streaming, tendo música pra mim tá bom, tá  

importante, e essa nova tecnologia em geral, mas… Posso te contar uma história?  

(…) Esse disco eu comprei em Porto Alegre, num sebo (…). Aí tô aqui num dia  

calminho, domingo, abri o disco pra ver, e olha o que encontrei dentro. Esse artigo  

do Los Angeles Times. Esse artigo é de novembro de 1980. Esse disco, o Double  

Fantasy, foi lançado em dezembro de 1980. Ou seja, o artigo foi publicado semanas  

antes do John Lennon ser assassinado: no dia 8 de dezembro de 1980 (…). Esse  

artigo aqui que foi publicado dias antes do John Lennon ser assassinado e de você  

ter nascido diz o seguinte: “os planos de John Lennon para o futuro”. Este disco que  

estou segurando passa a ser um objeto especial (Aquarius, 2016). 

Logo após a apresentação do título do filme, a narrativa é iniciada com uma apresentação de fotografias em preto e branco, remetendo a uma Recife mais antiga, cidade onde Clara vive, para apresentar os contrastes e as mudanças do tempo. Enquanto as primeiras fotos mostram planos mais próximos das pessoas, semelhantes aquelas que podemos encontrar em álbuns de família, com poucos prédios na orla marítima, as fotos seguintes já são enquadradas em um plano geral, como imagens aéreas que podemos ver em catálogos de construtoras, que privilegiam a crescente urbanização das cidades. Durante esse trajeto apresentado pelas fotos, podemos compreender a ideia de uma narrativa que aborda a questão da memória e que se passa do micro para o macro. Essas imagens são adocicadas nostalgicamente pela trilha de Taiguara, cantando “Hoje”.  

Ao longo do filme, Clara se encontra em um labirinto de emoções e memórias ao ver que o lugar onde lutou para viver está ameaçado, por empresários de um escritório de engenharia, a se transformar em um arranha-céu de luxo. Além de falar sobre o processo de envelhecimento natural do ser humano, fato que parece não ser compreendido pelos mais jovens — o que faz com que ela fique reafirmando que está viva para si e para os outros de várias formas — o filme também aborda os esquecimentos que ocorrem na rotina, ainda mais influenciados pelo câncer na vida da personagem e, com isso, a necessidade de se apegar aos vestígios, às raízes e às pequenas coisas que contam a história de suas experiências, do seu passado e de quem se tornou.  

Em Aquarius, o condomínio de Clara se torna quase um protagonista à parte, recebendo o mesmo nome que o filme, pois a câmera sempre se dirige a ele em vários planos, e a vida da personagem também entra em um estado de constante retorno ao lugar onde ela viveu com a família, onde continua morando e não deseja abrir mão de sua moradia, que representa mais do que só um lugar para morar, sendo principalmente um espaço de memória, abrigando o seu corpo e a sua história.  

No primeiro ato do filme, podemos ver o momento em que Clara desce do carro com os seus amigos, após voltar da praia, e olha para o edifício Aquarius, onde está sendo esperada pelo seu companheiro e pelos familiares. Após mostrar a fachada do prédio, a câmera constantemente se volta cada vez mais para dentro da estrutura, dando a ideia de que ele é o lugar para onde a protagonista deve e deseja sempre retornar. É o ambiente no qual esperam pela sua chegada e onde a sua história pode ser contada, vivenciada, rememorada e compartilhada de forma afetuosa. Para comemorar o aniversário de sua tia Lúcia, os parentes lotam os espaços da casa e festejam. Com músicas populares brasileiras dos anos 70, eles dançam pela sala, até que é utilizado um recurso cinematográfico de sobreposição ou fusão 

de imagens no plano em que os corpos lentamente desaparecem enquanto o espaço fica vazio. A festa acabou, o tempo passou, alguns detalhes mudaram, mas Aquarius continuou lá, resistindo às frequentes mudanças externas que rodeiam as cidades e sociedades, e Clara também, no mesmo lugar. Sobre essa relação com as experiências já vivenciadas que o filme aborda de diversas formas e o processo mental de fazer cinema, Santos (2018) afirma que:  

Em uma entrevista concedida ao jornal El País, quando é questionado sobre a  

origem de Aquarius, o diretor comenta que “Queria fazer um filme sobre um  

arquivo. Arquivos pessoais — memórias, experiências, relações com o presente, o  

passado e o futuro — enfim, o que cada pessoa leva consigo” (MORAES, 2017). De  

fato, Aquarius pode ser considerado um filme-arquivo em diversos aspectos. O  

primeiro deles é a técnica de montagem utilizada no filme, dividindo-os em três  

partes: o cabelo de Clara, o amor de Clara, e o câncer de Clara. Essa divisão  

contribui para a ideia de arquivo desejada por Mendonça Filho, pois, como as cenas  

de Aquarius não seguem uma ordem cronológica de acontecimentos, a divisão feita  

no filme ajuda a categorizar e organizar de um modo geral essas cenas dispersas no  

tempo. A montagem cinematográfica já é, em si, um ato de arquivamento […]  

(SANTOS, 2018, p. 3).  

Após a cena em que Clara é entrevista pela jornalista, é mostrado um enquadramento em primeiro plano com Clara descansando na rede e, ao fundo, em segundo plano, pelo vidro da janela, é possível notar a presença do corpo de um homem do outro lado da rua, em frente ao prédio, fazendo fotografias da estrutura pelo celular. Depois esse homem se junta a outros dois e entram pelo prédio, como se estivessem averiguando os detalhes. Há um plano longo que mostra eles lá embaixo, seguindo a continuidade da vista da janela, e apresenta o cochilo de Clara, mostrando os objetos ao redor e, em seguida, há o som da campainha que toca, indicando que o sossego de Clara será atrapalhado. Ao levantar e olhar pelo olho mágico, Clara faz uma expressão de cansaço, feito quem já sabe que a visita não será agradável.  

Quando ela abre a porta, o seu ex vizinho, seu Geraldo, que é dono de uma construtora, e o homem que estava fotografando o prédio a cumprimentam e perguntam se ela pode os receber, ao que imediatamente ela responde que depende e continua em frente à porta. Clara explica que já respondeu a seu Geraldo sobre a proposta de compra do apartamento de cima do dela, mas ele ri e avisa que trouxe uma contraproposta: a de comprar o apartamento dela. Enquanto isso, há um plano de zoom que direciona o olhar de Clara e de quem assiste ao filme para o outro homem que permanece sentado, e a câmera foca em suas mãos que seguram um pesado molho de chaves, dando a entender que todos os outros apartamentos já foram vendidos, e só resta o de Clara. Então ela explica que o apartamento dela não está nem estará à venda, agradece pela visita e se despede já fechando a porta. 

Quando a porta já está quase fechada, o outro homem, que se apresenta como Diego, parabeniza Clara por ter modernizado a planta do apartamento, afirma que traz “ótimas notícias” pelas quais está orgulhoso e explica que o projeto agora se chama “Aquarius”. Clara pergunta quem ele é, e seu Gustavo menciona que ele é o seu neto e que está fazendo um ótimo trabalho na construtora. Diego diz, então, que se trata do “novo Aquarius”, que antes iria se chamar Atlantic Plaza Residence, mas que eles preferem “Aquarius”, argumentando que a ideia é manter o nome do edifício que existia no mesmo lote, como se fosse para “preservar a memória da edificação”, e Clara logo comunica que o prédio existe. Isso nos leva a pensar sobre aqueles espaços que, muitas vezes, não são simplesmente restaurados, mantendo os seus detalhes originais, mas modificados completamente em sua estrutura externa e interna, e que permanecem com o mesmo nome para “manter a memória” do local, como se esta pudesse ser esvaziada e continuasse preservada apenas por conter a nomenclatura que as pessoas já conheciam.  

No filme, em meio às idas e vindas de ameaças da construtora e resistências de Clara, ela recebe uma visita de sua família, em seu apartamento, para colocar os assuntos em dia. Com isso, os filhos dela a avisam sobre os adesivos com o logo da construtora, que podem ser vistos em todas as portas menos na porta do apartamento de Clara e, ao saber disso, ela sai da cozinha e retira o primeiro adesivo que vê, amassando-o e jogando-o no lixo. Depois disso, há uma cena construída por planos e contraplanos na cozinha, montada por uma intercalação entre o plano conjunto com os filhos de Clara e um primeiro plano mais focado na protagonista, como aconteceu também no conflito com o seu Gustavo e o neto dele. Em um momento de diálogo entre mãe e filhos, a filha mostra a sua preocupação de que a mãe continue vivendo em um prédio abandonado, correndo risco de vida, e afirma que os três estão preocupados com a mãe, que está sozinha em um prédio fantasma, indicando que ela deveria vender logo o apartamento para se livrar de um problema. Clara, com uma expressão estarrecida, tenta explicar que não se trata de um prédio fantasma, visto que ela vive ali, que é lá onde seus filhos cresceram, e é principalmente por meio dele que a sua história pode ser relembrada.  

Longe de ser uma espécie de saudosismo, aversão ao novo ou conservadorismo, a narrativa nos leva para um lugar de entender a importância de preservar nossas memórias afetivas e resistir ao que nos é imposto, levando em consideração o que é mais importante. Um prédio, um bairro ou uma cidade não remetem apenas a estruturas e materiais físicos, mas à passagem e vivência de gerações, famílias e vidas que devem ser rememoradas em meio a tantas mudanças constantes. O tempo de filmagem das cenas normalmente é realizado 

com tomadas longas, quase sem cortes entre os planos, o que é um traço bastante presente no cinema nacional e ao longo do filme Aquarius. Consequentemente, Gabriela Santos (2018) declara que:  

(…) a câmera atua como os olhos do próprio espectador, visto que geralmente  

assume um ponto de vista e o que torna a cena muito mais subjetiva. Esse é um  

fator que contribui muito para a discussão de realidade no cinema e que, direta ou  

indiretamente, foi trabalhado no filme. (…) O estilo de filmagem utilizado no  

cinema brasileiro parece, portanto, ser feito em tempo real. Nessa perspectiva,  

Aquarius além de discutir as questões de ficcionalidade, torna-se propriamente um  

dilema ficcional porque não se trata de um filme-documentário, mas mesmo assim  

parece tratar de situações reais (SANTOS, 2018, p. 15 e 16)  

Nesse sentido, o cinema tanto documental quanto ficcional tem se mostrado uma ferramenta de alto potencial, ainda mais no contexto nacional, visto que dialoga com essa história que está em contínuo movimento. Por conseguinte, Nichols (2005) alega que não enxergamos a imagem como algo imutável, mas como a representação de um ato histórico que nos possibilita construir outros significados, de acordo com os nossos conhecimentos.  

“A memória é uma ilha de edição”, como afirma Wally Salomão em seu poema Carta Aberta a John Ashbery, e o cinema tenta entender a nossa existência para além do tempo e do espaço, como uma mídia que busca dar sentido — na forma mais múltipla desta palavra — ao mundo em que vivemos, contribuindo para a transmissão de experiências. Ao saber que a memória pode surgir — ou sobreviver — por meio da percepção de sentidos, e que a imagem forma uma constelação quando o ocorrido encontra o agora (REINALDO; REIS FILHO, 2019), é de extrema importância valorizar os locais de memória e entender o cinema como um destes.  

Assim como as ondas de um mar, que se quebram e percorrem o caminho de ir e vir constantemente, como um ciclo de dança infinito, em que não é possível programar nem calcular — com exatidão — seus movimentos para dentro e para fora, a relação entre as imagens, a narrativa, a memória afetiva e coletiva, e o cinema, acontece de forma a gerar histórias que puxam outras, e ainda mais outras: “não é progressão, mas imagem, que subitamente emerge” (BENJAMIN apud LISSOVSKY, 2014). 


Priscilla Pinheiro tem 29 anos, nascida e criada em Fortaleza/CE, é publicitária de formação, mestranda em comunicação pela UFC, e trabalha com redação e produção de conteúdo. Tem sempre um caderno por perto em busca de aprender coisas novas, registrar memórias, saber mais sobre si e desenhar outros caminhos. 

https://memoriasdevento.com  

Instagram:@pinheiroo.pri 


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