Bebê tem fascinação por lâmpadas – Trechos

Bebê tem fascinação por lâmpadas. Ri para o vidro ligado ou desligado. Ri para o bulbo. Ri para o fio solto pendulando numa conversa com o ventilador. Nós acordamos de madrugada para alimentar Bebê e não vemos sua risada para a lâmpada no escuro, nem Bebê vê o que não vemos. Só olha para onde está a lâmpada, fria, apagada, vidro. Nós sabemos do vidro. Sabemos que ele é maleável feito lava quando quente e duro quando esfria, rápido. Sabemos que é possível usar duas tábuas e com firmeza achatar o vidro quente, transformá-lo numa coisa achatada que tem o mesmo aspecto do chiclete que meninos sem casa catam na rua para remascar.  

A Assistente Social diz: esterilizem essas mulheres drogadas que trocam crianças por maços de cigarros. E nos conta da mulher que entrou pela porta gritando Tirem o monstro Tirem o monstro de dentro de mim.  

Bebê não sabe a pronúncia ou significado da palavra Monstro. Às vezes demoramos de propósito para levantar no meio da noite e alimentar Bebê só porque gostamos de ver sua boca cansar para baixo, um queixo derrotado. Gostamos de comprovar que Bebê precisa de nós mais do que precisa da Lâmpada. 


Bebê dorme com o braço em 90° e o punho fechado como se gritasse POWER TO THE PEOPLE ou TODO O PODER AO POVO. No país em que Bebê nasceu não se fala inglês, não se fala húngaro, não se fala iorubá. No país onde Bebê nasceu não se fala. Bebê nasceu no país das crianças sem língua ou no país sem linguagem. Bebê tem língua e sua língua não é presa, nos informaram os exames nos primeiros dias que seu músculo está solto.  

A língua de Bebê dá voltas, se descola da boca e flutua pelo hospital, acima da cabeça de bebês que não são Bebê, bebês que nasceram sem a ligação entre a bexiga e o rim, o umbigo e o rim, o esôfago e o rim e por isso precisam passar por delicadas cirurgias executadas por doutores cansados, auxiliados por enfermeiras cansadas. 


A Assistente Social quer dizer Eu sou a Assistente Social. Vim aqui me defender.  

Eu tenho um filho de 8 anos e um filho de 14 anos e até 3 anos atrás nós dormíamos todos no mesmo quarto. O quarto eu apelidava de albergue e dizia para o meu marido: você pode escolher o albergue ou o quarto ao lado, eu não ligo.  

Eu ligo para as crianças. Eu cuido de crianças o dia todo. Eu vejo crianças olhando pro céu e chorando, esperando alguma tia trazer a papelada. Eu ligo. Crianças abandonadas amam e odeiam os papéis. Documentos são papéis importantes, documentos te botam pra lá ou pra cá. O apelido dos meus dois filhos é Polaco. Polaco 1 e Polaco 2. Moro no mesmo terreno da minha mãe, no puxadinho da parte de cima, e não posso contar com a minha sogra pra nada. Quando demoro para chegar na hora do almoço minha mãe se preocupa.  

Eu vejo essas crackentas, eu falo assim porque quem usa crack é crackenta, Eu vejo essas crackentas chegarem aqui com essas crianças com cara de adulto e enfiarem chupeta na boca delas. Chupetas grossas de plástico rachado. Se você olhar bem para o perfil desses meninos vai ver que eles já têm cara de adulto. Defendo a Esterilização. A Enfermeira da Maternidade Madre de Deus concorda comigo.  

A Enfermeira me contou de um casal que chegou de chinelo de dedo e as coisas numa sacola plástica de mercado e o pai dizia onde come 8, come 9, come 10, come 11, come até 12 (12 parece que era o limite). Eu sou cheia, eu sou uma mulher grande, eu aproveito para dormir com meus filhos na cama enquanto eu posso, por isso eu não entendo o abandono, eu não entendo a lei, eu só entendo a agulha, só entendo o corte.  


Nos falamos através de Bebê como se Bebê fosse uma lasca de vidro, uma divisória transparente dentro de uma cela onde cumprimos nossa sentença. Não mencionamos os nossos nomes, só o de Bebê e nos revezamos para perguntar e responder o que nos interessa, através de Bebê. Moramos juntos num lugar que chamam de vila, com outras famílias e outros bichos, ninguém acorda tanto durante a noite quanto nós. Não saímos do nosso lugar para nada mas sonhamos que estamos subindo os morros até a casa dos nossos amigos. Sonhamos com visitas e vizinhos que se cumprimentam de cara limpa.  

Temos para registrar o crescimento de Bebê uma câmera velha que ainda funciona, mas os acessórios que vinham com ela foram jogados no lixo, por isso as fotos ficam lá dentro e não conseguimos acessá-las a não ser por um pequeno quadradinho riscado e quando apertamos com rapidez a seta da direita colocamos as fotos em movimento e então temos um pequeno filme das caretas de Bebê, que chamamos, secretamente, de “Documentário Sobre O Que Mais Pensamos”.  


Bebê não olha para nós enquanto se alimenta. Quando procuramos seus olhos, Bebê vira o rosto, deixa a visão vidrada no que se passa atrás de nós. Quando cansamos de procurar por Bebê seguramos seu corpinho forte e balançamos Bebê forte demais. Bebê resiste ao choro, não quer dar o braço a torcer e quando chegamos num ponto em que algo perigoso pode acontecer, Bebê vomita. Um jato branco sai pela boca e nariz de maneira tão feroz que seu rosto é um reflexo do nosso susto. Como evitar as lágrimas? Nós choramos. Bebê está mole, seus bracinhos pendem pra fora do colo. Bebê nos venceu novamente.  


A Enfermeira nos conta que acordou às 4h da manhã assustada e seu filho não estava no seu colo, o marido tinha pegado a criança sem ela perceber. O nome do filho da Enfermeira começa com H mas não lembramos o resto. Ainda não sabemos distinguir o choro de Bebê dos demais.  

No hospital, uma criança de 1 ano morreu, a família toda está contaminada. Essa Terra é uma história de terror, mesmo que agora Bebê começe a sorrir ao nos ver.. Ontem à noite deitamos para dormir e tivemos pesadelos com vampiros. 

O sonho era assim: duas meninas querem assistir um show de comédia num estabelecimento clandestino, que teima em abrir. Só tem pessoas velhas na plateia, o comediante está no fim da carreira, um cachorro pequeno protege a entrada do lugar, é preciso subir alguns degraus até as cadeiras. Uma pessoa segura na mão bebês do tamanho da unha de um polegar, é fácil perdê-los, deixar eles caírem no chão, esmaga-los sem querer. Os vampiros entram em certo momento no sonho mas não lembramos quando, nem como. A doença faz a gente se desapegar de segurar os bebês com força.  

A Enfermeira trabalhou até o final da gestação que durou 32 semanas, 6 semanas menos do que o previsto. H nasceu com 1,8kg e passou 23 dias internado. H é uma criança do seu tempo, já conhece o vai e vem do hospital, como as luzes raramente são apagadas e como a carne de porco é servida velha.  

A Enfermeira come o macarrão com rodelas de calabresa, sonha com grandes cabeças de porco no baú de um caminhão toco. Ela assiste às mães indo embora e voltando ou com uma nova criança ou com a nova doença. As mães sentem falta de ar e sentem enjoo e não conseguem levantar a cabeça. A enfermeira riu ao ser empurrada em cima da maca, quando normalmente é ela que empurra, ver o hospital por outro ângulo, não se preocupar em quem está no quarto, ignorar os pedidos de mais coberta, mais travesseiro, mais água, ver as mulheres olhando através do vidro embaçado enquanto as crianças choram. Na maternidade só as janelas são de vidro e têm grades. 

Que curioso ver o hospital de baixo, estar na horizontal, ter as portas abertas para ela, é verdade que as luzes são um pouco fortes demais, ainda assim dá para se perder olhando o brilho das lâmpadas.  

Além de H recém-nascido, a Enfermeira tem uma filha de 15 anos que esse ano não fez festa de aniversário. A Enfermeira acredita que a filha não deve ajudar com H, ela é só uma menina ainda e não é justo ter esse tipo de responsabilidade. A Assistente Social concorda, é como dizem: Maria pariu, ela que balance. 


Mais uma empresa estrangeira anuncia que vai sair do País. Não imaginávamos que iríamos viver assim, de uma maneira que exigisse esforços para além da perseverança, todo dia prevalecer acima de algo, trepar em cima de montes de corpos. É porque não somos as únicas criaturas aqui, porque não temos prioridade sobre nada que nossas vidas estão a perigo.  

Existe um conto judeu que fala de um grande navio com vários andares. O homem da primeira cabine, a mais perto do chão, decide cavar um buraco. Quando os outros percebem o que está acontecendo questionam a escolha e ele responde: a cabine é minha, paguei por ela, faço o que eu quiser. O navio afunda com todos dentro. Assistimos ao nosso País como a um navio balançando com muitas pessoas dentro e torcemos para que algumas pessoas caiam para aprender. Ou que pelo menos caiam antes de nós.  

Bebê não sabe a pronúncia ou significado da palavra Empresa nem da palavra País, o depois de Bebê será diferente do nosso antes, uma lâmina que corta, ser refém de alguém mau, perceber um monte de folhas que cobre o local onde um cadáver foi enterrado: tudo isso nos assusta, mas Bebê desconhece o significado da palavra Medo. A vila também é nosso país e os mortos também são nossa família, retornar ao pó é se despir da identidade, tudo isso sabemos no nosso coração, e ainda assim não sabemos. O que decidimos fazer por nós é nos concentrarmos em rituais que sustentam a vida. Ontem calados conversávamos à mesa sobre a escassez da comida. Bebê ainda não come, para Bebê a única coisa que importa é que o navio seja iluminado por lâmpadas. 

Bebê começa a sorrir de manhã quando acorda e pensamos que nem tudo está perdido ou melhor que nada se perde, nada se desprende do planeta. Para além do que está acontecendo lá fora também existe o que está acontecendo aqui dentro. Só que o dentro é também o fora, e o dentro às vezes é lidar com a morte da própria mãe.  


Julia Raiz é nascida em SP mas escreve do PR, onde mora atualmente. É escritora de ficção e ensaio, mantém o podcast Raiz Lendo Coisas (disponível do Spotify) e trabalha na área de tradução feminista. Publicações: “diário: a mulher e o cavalo” (Contravento editorial, 2017), “p/ vc” (plaquete, ed. 7Letras, 2019), “cidade menor” (plaquete, ed. Primata, 2020), “Terceiro Mistério” (plaquete, ed. Lola Frita, 2022) e “Metamorfoses do Sr. Ovídio” (ed. Arte & Letra, 2022). Para saber mais acesse: juliaraiz.com.br 


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Beto Martins | Café Libertas | Atena Bookstore

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