A “descartabilidade” é a doença 

Quando me descartaram pela primeira vez, não me dei conta. Na segunda, achei natural e continuei sendo descartado ao longo dos anos. Na família da parte branca, na escola, no futebol, no “beijo, abraço e aperto de mão”, na oficina, na marcenaria, na festa, no baile e na sociedade inteira. Aprendi que ser descartável é uma consequência de imbróglios históricos que não aparecem do nada. 

A “descartabilidade” é a doença que acompanha os “feios”, negros, pobres, judeus, “macumbeiros”, velhos, mestiços, refugiados, mulheres, gays, analfabetos e afins. Quando uma luz surgiu na forma de arte, percebi que um apanhado de descartáveis se posicionava através de seus trabalhos e que manifestar suas misérias era uma forma de fugir da descartabilidade constante. Senti que poderia me revelar num colorido, numa forma diferente das tradicionais. Fazer arte me fez perceber que poderia representar minha realidade por meio de outros personagens. Aquilo que ainda não entendia – porém me fascinava – era a melhor maneira de resistir ao suicídio cotidiano. Morrer um pouquinho a cada dia não seria mais necessário. Era preciso resistir um milímetro por dia para não ser mais empurrado ao abismo social que nos torna ainda mais descartáveis. Estava acostumado a retroceder sempre, mas agora fundiria meus pés ao solo de cada canto que pisasse. Foi assim que me fiz arteiro, artista e sobrevivente. Foi em Embu das Artes, São Paulo, que percebi que isso poderia ser uma verdade hipocondríaca, mas possível. 

Ainda criança, na escola de gente rica e crente onde era bolsista, o hábito era eu ser colocado atrás dos alunos alinhados, por ser meu uniforme feito por minha mãe e mais simples que os demais. Não vestia gravata ou sapato polido. Eu vestia a realidade pobre; eles, a imagem da burguesia. Quando fui descartado no teatro, numa escola de arte na Vila Madalena, em 1987, me deram algo; me empurraram o papel de um homossexual soropositivo, entendendo que o personagem seria uma forma de me diminuir e me desestimular da vida dos palcos, que era o único que me caberia por ser eu bolsista, pobre e periférico. Não tive dificuldade em encarnar minha realidade na fantasia. Como de hábito, aceitei sem relutância. Aprendi que a arte também tem seus descartados. Foi assim que abracei a rabeira das coisas com naturalidade. Entrar em um ônibus descalço aos 11 anos e ver os sorrisos de canto dos meus iguais, que apenas por terem sapatos agiam como a “elite”; ser proibido de entrar no elevador social aos 12, ser reprovado para a vaga de garçom aos 14 por ser feio e negro. Essas experiências me ajudaram encontrar minha verdadeira identidade e enfrentar a descartabilidade com cores e foco no resistir. 

A vida tornou-se uma sequência de violências inconscientes, de ataques e contra-ataques, e trataram de colocar as feridas para secar ao sol ou ao sal do suor, para que outras pudessem ser abertas. Depois da “boa” escola burguesa que ensinava ser racista, antissemita, contra comunistas, que artistas são coisas do demônio, fui para as piores escolas, mas conheci uma verve que me levaria até uma sensação agradável. Aprendi a criar meu mundo na fusão de outros mundos pobres e descartáveis como o meu. As amizades verdadeiras, raras como são, me supriram as ausências de sorrisos e prazeres, e às vezes, até de alimentos do corpo e da alma. Os verdadeiros professores, importantes como são, me ensinaram a viver com pouco ou quase nada, e a sonhar grande através de pequenas coisas, histórias e resistência. 

A arte tornou-se extensão da minha vida, meu espirito vivo; e sobreviver, a arte de existir. Em resumo: posso fazer muitas coisas para sobreviver, mas não posso sobreviver se não fizer arte. Assim, vão surgindo as soluções e formas que compõem a trajetória simples e concreta de esculturas, músicas e poesias. Não quer dizer que eu seja escultor, musicista ou poeta. Quer dizer, isso sim, que sou persistente e sobrevivente entre os meus iguais, que são descartados nos cemitérios periféricos vítimas de outros descartados que acreditam serem representantes da polícia e da repressão. Respeitando as adversidades, mas me negando a ser vencido por elas, continuo criando meus personagens e alimentando o meu dia a dia com seres desfigurados como eu, lindos como meus filhos, amáveis como meu amor, e egocêntricos como os mestres da arte que me inspiraram. Podemos encontrar, ao longo das composições, figuras constituídas de felicidade, aves em voos de solidão, agonia, esperança, liberdade e fênix ressurgindo. Os seres das matas, dos rios e dos esgotos se encontram com a mesma importância que é dada aos descartáveis. É comum serem identificados também favelados, sem-terra, sem comida e sem esperança, manifestando suas angustias. Todas essas faces do mesmo mosaico retratam espíritos resistentes, desencantados ou encantados. Constituem-se através de matérias, recolhidos de monturos de coisas, lixos, entulhos e restos que ninguém mais quer. Assim chegamos aos seus corpos e emprestamos a eles a vida. Damos-lhes algo para vestirem para que possam, ainda que temporariamente, abandonar a descartabilidade, e serem admirados como peças decorativas, artigos inúteis, ou objeto de arte. Revestimos de cores os seres opacos, destruídos, queimados e de espíritos sugados. Alguns nascem de pedaços que se encaixam encetando por si só o seu desejo daquilo que gostariam ser. É o desejo natural de dois cacos de madeira de se tornarem uma ave que voa ilusoriamente ao infinito. Esse desejo é comum em sobras de madeira de construção civil que ajudaram realizar o sonho da maioria de ter um imóvel. Para esses cacos (des)humanizados, fechar o arranjo da sinfonia de carpinteiros para conter o concreto foi sua última razão de existir útil, e então, tornaram-se descartáveis. Através da escultura reconstituímos sua importância no palco das coisas que podem ser consideradas supérfluas, mas que para nós, artistas, são fundamentais. O tronco reduzido à ínfima parte de toda sua importância quando viçoso na verdejante existência na floresta é resgatado, como se a vida não tivesse abandonado sua seiva mesmo naqueles fragmentos/cacos aproveitados pela subjetividade do artista. Manifestam seus desejos nas mais diferentes formas, imitando figuras humanas, cães, peixes e até montanhas. Querem mudar de forma, de vida, para se esconderem da ganância humana que os destruiu sem nenhuma compaixão. Assim, somam-se os desesperos do artista, as angustias da floresta e a miséria social para experiências conjuntas. 

Cada centímetro deste trabalho arrasta consigo a dor, a tristeza e a solidão dos desgraçados descartados em algum minuto de suas vidas. 

Descartados, lançados ao mar nos navios negreiros.  
Descartados, índios de todas as Américas e dizimados pela crueldade das igrejas, da ganância do homem branco ou mestiço, das queimadas e das doenças. 
Descartados, judeus nos campos de concentração e ao longo de sua existência. 
Descartados, que amam pessoas do mesmo sexo, que são violentados e assassinados em todas as partes do mundo. 
Descartadas, mulheres violentadas e exploradas em qualquer canto do planeta.  

Aos animais descartados nos frigoríficos, criados com crueldade e assassinados para satisfazer o prazer de poucos e não chegam a saciar a fome de muitos. 

Aos pobres, descartados nos campos do interior do país pelo agronegócio. Aos descartados das favelas esquecidos pelo Estado e pelo mercado imobiliário. 

Aos descartados nas escolas públicas pela mercantilização da educação e de diplomas. Aos descartados nos hospitais públicos pelo avanço da comercialização de planos de saúde e tráfico de influência da medicina particular. 

Aos descartados nos presídios por falta de uma justiça que alcance a todos. 

Aos descartados que catam tudo que os outros descartam e vivem puxando seus carrinhos, e ainda assim, são descartados pelos governos mesmo tendo função tão primordial ao meio ambiente. 

Aos descartados mestiços de negro africano, europeu e índio como eu, identificados apenas como brasileiros e cuspidos ao mundo para serem descartados. 

É intensa a luta e a dor que forma os painéis e ergue as esculturas, mas eles jamais serão capazes de representar a verdadeira face da crueldade, da ganância e da ignorância humana. Nosso planeta, a Terra, está se identificando cada dia mais com os seus habitantes descartáveis. A elite mundial, a extrema direita, racista e mercantilista, com o apoio de milionários de todos os continentes, está tentando viabilizar a ocupação de outro planeta para também descartar este em que vivemos. Assim serão descartadas também todas as criações divinas e humanas que constituem o planeta azul. 

Descartados é apenas mais um agrupamento de seres criados que está inserido neste contexto de mundo. É uma mostra de arte despida de luxo e intencionalmente provocativa. A viagem interplanetária imaginária através das peças iniciou um processo de reflexão em muitos seres, e te convido a aprofundar-se. Fomos estimulados a fugir de materiais caros, raros e ecologicamente destrutivos para encontrar uma maneira de recolocar e colocar na galeria ou nas salas de exposições matérias simples e de baixo custo econômico, em busca de uma riqueza estética plural. É a razão de ser artista, escancarando as dificuldades materiais do andarilho das artes. Como que mendigando sua atenção aos traços, compomos troços. Acostumados ao invisível, pedimos atenção aos detalhes, curvas, sombras e luzes que constituem as mais variadas formas. 

Na ilusão de capturar sua sensibilidade emprestando-a ao sugestivo momento de contemplação, nos tornamos guias temporários de um caminhar cheio de texturas. Tecendo a malha da criação individual tateamos entre a firme convicção e a insegurança das formas. Algumas organizadas matematicamente, outras agrupadas como algo entre uma explosão e um acidente. 

A aleatoriedade das figuras dramáticas é do tamanho de nossa angustia em nos apresentar despidos de ilusões e sonhos. Tatuados com a cruel realidade de sermos seres descartados, no entanto, ressurgimos. Com foco indireto, tentamos atingir inúmeras maneiras de sensibilizar os espectadores. No centro das atenções estão as denúncias já feitas inúmeras vezes e ignoradas em sua maioria. Aqui, não há nada de novidade, nem novas formas de fazer arte. Descartados é junção de ideias, ideais e soluções que podem novamente serem ignoradas, admiradas, rejeitadas ou descartadas. 


Joilson Guespires é nascido em uma olaria em Embu das Artes-SP em 1970, e viveu sua juventude entre Taboão da Serra, São Paulo e Embu. Estudou música, desenho, teatro, escultura e comunicação. Foi assistente do escultor e pintor italiano Becheroni e repórter de vários periódicos e rádios ao longo dos mais de 40 anos de luta pela sobrevivência e defesa da sociedade. É instrutor de artes com ênfase em escultura e comunicador. Dedica-se, desde 1989, profissionalmente à arte e cultura, seja na música, na comunicação ou nas artes visuais. Radicado em Campos do Jordão, desde 2012 produz esculturas e paineis com restos de madeira de construção civil e sobras de queimadas. 


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