Imagino ele, posso vê-lo, quase tocar seu braço quando caminha até o almoxarifado, apresenta a planta baixa e as planilhas de material, enquanto ela toma notas. Ela estende a prancheta na direção dele e, num roçar de dedos, pulsa uma emoção ainda inominada, inocente. A obra continua e ela sorri. Ele vai voltar no dia seguinte, quer ter certeza de que foi um sorriso.
Ou ainda, imagino que eles sejam vizinhos, que pegam o mesmo ônibus todos os dias. Ele guarda um lugar para ela e as histórias que gosta de contar. Inventa na hora, aprende e repete para ela rir. Aquela é sua deixa. Ela ri escancaradamente das piadas que ele conta, e acredita nas histórias, ou finge. Ele fica orgulhoso, essa é sua deixa, ele sabe. Se não agir rápido vai perder a coragem. Quase passam do ponto, o momento passou.
Não é nada disso. Eles entram todo dia por esse portão enquanto o caminhão descarrega o material. É a entrada da obra. Ele sabe que ela é curiosa, repara o olhar dela buscando nos detalhes algo que sirva para um comentário. Deixa o recado e espera a resposta, antes que o servente recolha o material e a pergunta não seja vista, ou a resposta fique soterrada pelas nervuras da laje. Ela não vê, ou finge que não, tem gente demais em volta. O servente chega com o carrinho.
Mas tem essa, a minha preferida:
É a fase final da obra. Ele instala o gesso nos tetos dos apartamentos, ela faz a limpeza final. Implica com ele, que suja o corredor com o pó branco da serra das placas. Ela limpa e se irrita, o serviço não acaba. Ele para tudo, atravessa a rua e compra um dindim para ela se animar. Pega a toalhinha que usa no pescoço e joga para ela secar as mãos úmidas. Ela fica com o cheiro do cangote suado misturado com perfume de almíscar impregnado nas mãos. Na volta pra casa, alguém passa ao seu lado com aquele cheiro. Não é o mesmo, falta o suor.
No dia seguinte, vai limpar o apartamento e percebe que o teto da sala do apartamento 606 não está finalizado. Antes de ir atrás dele para reclamar o fim do serviço, vê algo escrito.
Seu nome.
Sobe na escada e vê a frase toda, quase 360°:
“Raimunda, larga seu namorado e fica comigo.”
Ela ri, mas logo para, não quer que ninguém saiba.
Ela não tem namorado. Diz que tem para os cabras da obra não importunarem. É mulher na construção civil.
Pega um pedaço de gesso e responde, do jeito que dá para escrever com a cabeça enfiada num buraco no teto.
“Posso”.
Desce a escada e corre para o andar debaixo, à espera dele, que vai chegar com café e tapioca. Ele surpreende, chega com uma flor.
Imagino que é noite de sexta. Ele leva Raimunda para o forró.
Manuel, o galego, Raimunda e sua pele escura.
Ela solta o coque e tem cabelos compridos, negro azulado, passa batom e se perfuma também.
E eles continuam a dançar anos depois.
Ele dá rosas para ela, 30 anos juntos desde o recado escrito em 1992, ano da entrega dos imóveis.
Eles reúnem os filhos e netos e contam de novo e de novo a história de como começaram a namorar.
O galego sempre foi tímido, diz ela, nem sei como ele foi capaz de escrever aquele recado. Será que alguém achou?
E ele ri sem graça, faz anos que ela repete essa pergunta, de um jeito que não exige resposta, é só curiosidade mesmo.
É janeiro de 2023 e eu faço uma pequena reforma no apartamento 606. Encontro o recado.
Que sorte a minha, abrir essa cápsula do tempo, e imaginar todas as histórias de amor que eles podem ter vivido.
E agradeço por terem plantado essa energia amorosa aqui, nesse lugar que a gente chama de lar.
Sorte a deles ter uma história como essa para contar. A vida passa, as histórias ficam.
Elaine Resende é arquiteta, doutora em engenharia civil e escritora. Contribui nos blogs Sabático Literário, Coletivo Escreviventes, Escritor Brasileiro e no Quarto 42. Tem um livro infantil publicado, A Professora da Lua, pela Amazon kdp, e participou de diversas antologias. Seu perfil no Instagram @cria.elaineresende traz resenhas de livros e filmes, alguns textos e pensamentos. O canal no YT (@Lendodetudoumpouco) discute literatura. É carioca e vive com o marido, dois filhos e seu cãozinho Byron.
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Lindo texto, senão pelo estilo, pelo correto uso dos vernaculos, mas principalmente pela característica de transformar em prosa aquilo que é prosaico, reflexo da vida do autor. Parabéns à autora e ao Conselho Editorial pela escolha.
Conto maravilhoso! Romântico, feito de amor e sedução. Parabéns!
Gostei do retrato, com letras e palavras, que traz muito do real e imaginário. Parabéns pelo texto.
Que texto gostoso de ler! Imaginei a obra cearense com a tapioca e o dindim, a poeira, os olhares, os risos tímidos… Parabens!
Um texto lindo, delicado falando de amor. Amor simples, verdadeiro com sabor de café e tapioca. Parabéns, adorei esse texto.
“Que sorte a minha” ter acordado numa manhã de segunda-feira e ter lido essa belíssima crônica!
É ou não é um excelente início de semana?
Que leitura deliciosa! Parabéns!