2 de maio. 

É sabido que no Oeste não há mar. Fomos geograficamente afastados do oceano por muitos quilômetros, talvez por eras geológicas, por eras históricas, mas hoje escuto o quebrar das ondas em maremoto bem aqui, através da minha janela noturna. Este mar me pertence, ronca igual esse mar aí que faz profundezas.  

Invento no gotejar incessante uma praia completa. Alagada. Açude transbordando em ondas. É maremoto que chega. Fúria da ventania. É uma beleza a ruína que nos resta. Estamos ilhadas… 

*** 

11 de maio 

“Invento no gotejar incessante uma praia completa”. fico repetindo esse verso como se gotejasse vontades de ondas e fúrias de ventania. e do mar inventado desde minha ruína, ensaio ganhar outras ilhas, andarilhar outras línguas. sempre será esse meu desejo, amiga terra. sonho antiga e abissal. durmo calmaria de medos, dentes apertando gritos que irrompem das fossas submarinas. corpo todo afundado em águas mortas, quilômetros e quilômetros, por eras arquetípicas, arqueologias sanguíneas. bile amarela colérica correndo nos antebraços causam aquela sensação estranha familiar de um pavor que dói. o corpo afunda arrastado pelo imenso piano amarrado ao tornozelo por uma corda. o piano toca silence no oceano da minha melancolia. do escuro desse abismo os olhos insistem em resgatar navios, noite após noite, o desejo de ir. e fugir da queda do céu. 

*** 

15 de maio 

Amiga mar,  

aqui ainda chove, no mesmo gotejar incessante. Lá embaixo, desde a parte mais plana do terreno, Catarina me olha e reclama da inundação. De lá ela não pode nem se mover; cativa clama por salvação, quer providências. Mas não faço nada, não farei nada até que a chuva…você me fala de afundar amarrada a esse imenso piano, lembro que Piva, andando pela praça V, me contava que “Oswald Spengler tem uma porta no seu tornozelo & nuvens através dele”, penso que afundar deve ser também uma espécie de voar, afundar assim, na velocidade possível para um corpo pequeno tem um peso e uma pressão equivalentes a atravessar grossas nuvens de chuva. Sempre haverá algo, um piano, uma porta, uma estrela, presa ao nosso tornozelo para lembrar-nos que estamos cativas, como a Catarina, inundadas, ou pior.  

Uma ironia a senzala se chamar “Doce Lar”, um sarcasmo diria até… afinal tudo se trata de uma tentativa apaixonada de fuga. 

E então eu tinha que te falar da terra, das laranjas que já estão coloridas e doces, mas a beleza não se presta para o exílio no próprio peito. Sim, somos abissais. 

*** 

18 de junho, 15h44 

eu volto pra te falar de ansiedade, de vontade de mar. eu falo falo falo. leio hoje no sol o lacan, o seminário do desejo e sua interpretação. ele me montou uns esquemas de letras e de barras e por fim falou do desejo comme lieu de la parole. e a minha ansiedade é tão determinada que nunca para. a coisa dessas ânsias tem origens incertas e há dores com a cor do fado, dores blues e drogas todas lícitas expostas e drágeas de desgraças e tudo que vem após o nascimento das tragédias 

a tristeza é senhora, canta o caetano 

e anseio o mar que me engole e me devolve inteira 

o i ching bem que me avisou para abrir os portais 

amiga terra, no meio do caminho em direção ao mar posso me acovardar e adoecer e deixar de fazer o que deveria, afinal arranjar utilidade remunerada por meus braços fortes, pois são suficientes pra ajudar muita gente, melhor que meu dedo hasteando bandeiras com filtros nas redes 

nunca sei se soo convincente 

acredite eu sofro de porteiras abertas pelas mortes de uns encantados que estão na guerra enquanto cozinho ansiedades em fogo brando 

do mar para o terreiro. porque na próxima bifurcação posso também querer arregaçar essa dor numa gira 

a cachaça a dança os tambores e o sagrado que nos carcome 

queria te contar dos livros que dedicamos à perda sem contrapartida. falamos há pouco de amada, da tony morrisson, e dos fantasmas de palavras; também da única palavra articulada por uma boca sem língua no torto arado. 

leio ansiosamente a montanha mágica do thomas mann e estou quase sendo empesteada sem qualquer nexo sensual, é parte de um sintoma antigo essa ânsia pelos clássicos tijolões. é outro o sentido da montanha mágica, tudo tem voz de pneumotórax. fala de uma morte que habita a preguiça do corpo vivo ainda, uma morte consentida 

mas te pergunto 

e o que não tem cansaço? aquilo que não dá consentimento pra morte besta em vida? o que me dá e me ultrapassa? 

não está na montanha mágica. 

há qualquer outro sentido que farejo ansiosa e é bem fácil de achar  

nessa conversa de hoje, nas minhas cachorras, no café 

estou lendo também a história da loucura e ouvindo uma música que fala de perdição e do que será 

depois a gal emprestando a garganta para o luiz melodia é daquelas vesânias que entorpecem e a gente logo pede pra seguir em frente a vida do jeito que durar, ardendo um pouquinho vez ou outra 

pérola negra te amo te amo nem sei se te amo 

tente esquecer em que ano estamos 

*** 

19 de junho, 19:03 

Amiga, quero te ler submersa. Liberta daquele piano imenso que te leva para as profundezas abissais. Quero te ler única sereia-unicórnia reluzente. Não importa se do bem ou do mal, vais para além dessas fronteiras no mundo submarino. Quero te ler com aquele fôlego que só os seres marinhos têm. Sopre forte para que eu possa atravessar o mundo subterrâneo (onde me encontro) até chegar a você. Para que eu possa atravessar em um único fôlego o mar de Lidenbrock que Júlio Verne imaginou e que agora faz morada no meu corpo.  

Meu caminho é longo, vou encontrando os túneis cavados pelas minhocas, e os poucos espaços vazios deixados pelas raízes arrancadas. Está muito denso aqui embaixo, sempre lento; confortável se me calo, se me quedo. Exaurida, encontro tão somente a superfície da terra arada, sulcos de versos sem fim. 

Arado é a única palavra que uma boca sem língua pode dizer. Arado. Palavra torta, assonante, que pode ser falada sem língua, mas não sem terra.  

Se eu cavar essa terra toda que me enche a boca, talvez possa responder sem tanto pensar, sem tanto estudar, que o que te atravessa, e arde, e dura, que o cansaço que nos escurece a sombra, é, e nada mais; para além e aquém de nossas tentativas bestas de sermos mais do que minhoca ou mais do que unicórnia. 


Ibriela Bianca Sevilla é doutora em Literatura pela UFSC, professora e pesquisadora independente de literatura brasileira contemporânea. É sócia fundadora do Instituto Cultural Nossa Maloca, de Chapecó-SC. Atua em projetos culturais ligados ao incentivo à leitura, performance poética e leitura dramática. É integrante do Coletivo Abrasabarca com quem tem dois livros publicados, Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). Publicou seu livro solo de poemas Mínimo Tratado da Paixão (Urutau) em 2021 tem pós-doutorado em roça e atualmente leciona língua portuguesa e literatura na rede estadual de ensino em Chapecó-SC. 

Luciana Tiscoski é jornalista e escritora. Tem mestrado e doutorado em Literatura pela UFSC, com estágio em doutorado na Université Paris X – Nanterre, França, e pós-doutorado em Artes Visuais na linha História, Teoria e Crítica, pela UDESC. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca, participa dos livros Abrasabarca, lançado em 2018 pela Editora Medusa, e Revoluta, de 2019, pela Caiaponte Edições. No Sesc Santa Catarina, foi técnica de cultura, desenvolvendo projetos e compondo curadorias em diversas linguagens artísticas. Lançou o conto “Uma menina gorda”, pela Editora Butecanis, e “Área de broca”, seu primeiro livro individual de contos, pela Editora Nave, ambos em 2021. Atualmente, é redatora da Una! Criatividade e Impacto Positivo, agência de criação publicitária e cultural. 


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Um comentário

  1. Muito bom, adorei o estilo!!! Parabéns às autoras!!!

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