Lado B-Lado A – uma estória de má interpretação

Lado A  

Na cena musical é meio que praxe sequenciar duas ou três canções potencialmente comerciais para abrirem a audição. Há quem nunca na vida tenha se dado ao trabalho de virar o disco de vinil ou a fita cassete de lado. Existe gente pouco curiosa e gente uma música só – o hit do verão ou dos infernos das outras estações. Já na literatura também é verdade que a primeira frase conta. O primeiro parágrafo idem, mas ela e ele são indicações, não se bastam, empurram a leitora ou o leitor para a frente. Se a primeira frase for ruim, dificilmente haverá engajamento. Outra coisa interessante que os do “contra” (rebeldes sem causa, outra maneira de malhar os que gostam de tensionar ordens) fazem é iniciar a audição pelo lado B. Uma maneira de reconfigurar a narrativa caso seja um disco narrativo. Nem sempre é o caso, aliás, contemporaneamente é pouco comum, uma arte praticada por Luedji Luna, Linniker, Josyara, Anelis Assumpção (das que me gritam agora, dentre outras e outros). Na literatura, basta citar Júlio Cortázar e o seu “Jogo da Amarelinha”, onde não há linha, nem lados, mas composições possíveis que mudam a narrativa. Um livro que produz muitos leitores, talvez alguns do “contra”, como um amigo meu.  

Rê Rê Rê Rê  I 

A outra versão desta estória, talvez a primeira, ou segunda, contando algum acontecimento real, começa com a reprodução da voz do Pica-Pau, quando ele fica mais louco no desenho animado, sendo justamente conhecido por Pica-Pau louco. Para ser bem honesta, desta versão, musical, um disco, quase só entendi isso mesmo. E não importa porque a ideia sempre foi usar os lados A e B, com suas respectivas faixas, como títulos e subtítulos de outra estória. Ouvir o disco foi um osso do ofício de quem não passa por cima das referências quando elas estão disponíveis, sem termos que derrubar uma lei ou um governo para acessá-las. A pena do preguiçoso é se achar original, herança romântica.  

Rê, rê, rê, rê, quem é você?  

Escola na Maldade 

Até o ano passado, nossa personagem dava bom dia entre dentes, arrotava em público, cantava alto no meio da rua, sentava no balcão para tomar uma cerveja. Neste ano, nenhuma destas coisas mudaram, mas elas são feitas por um monstro. Um monstro moldado por 254 dias de muitas traições, humilhações, enganos, dias de muita guerra e nenhuma glória, dias de solas gastas nas calçadas e nas noites, de sorrisos fáceis, de desconfianças.  

Grade do ano letivo  

Segunda-feira – correr quatro voltas fugindo de falsos e falsas supostas amizades. Despistar antes de cortar cabeças com o facão.  

Terça-feira – identificar trepadores de buceta desinteressados de todo o resto e comedores de cu na mesma pilha. 

Quarta-feira – identificar fascistas e cantar mais alto nem que seja a Tarantella. Importante e objetivo: abafar o que dizem, impedir o que pensam, cortar a língua impugnando a língua através da língua. Fazer calar a boca, resumindo. Por outro lado, pesquisar polícias e milicos. 

Quinta-feira – olhar burgueses como se fossem moscas. Modo de fazer: encare a pessoa de lado e pressione as sombrancelhas e os lábios como se você duvidasse do que está vendo. Depois só expresse desprezo. Você já aprendeu que burgueses não suportam inteligência, então, não finja ser inteligente, estude.  

Sexta-feira – dia reservado para as leituras que não foram completadas durante os outros dias da semana. À noite – andar pelas ruas para observar, ouvir, falar, dançar, correr, cantar (qualquer outra coisa, incluindo trepar). 

Sábado – morder pessoas desprevenidas ou oferecidas nas feiras da cidade. De sobremesa, um tomate ou laranja ou queijo de colônia com uma garrafa de vinho tinto (não é opcional). 

Domingo – o clássico – roubar as hóstias da missa da manhã na Catedral antes da homilia (a ação pode se dar no sábado depois de ouvir umas musiquinhas punks na frente de algum culto). Curtir na pracinha fazendo careta para os pais bem limpinhos que não deixam as criancinhas correrem e se atirarem na grama e na areia e na terra e na lama.  

As Putas 

Transamos gente e nem todas são necessariamente profissionais. Quem não gosta e não tem condições financeiras opta pelo mosteiro ou qualquer outra forma de vida longe do sexo (não que sejam todas santas ali). Nosso negócio é rua, alcova, festa, conforto e espelhos. Com isso ninguém disse que não faz um monte de coisa detestável. Na terça-feira, vespertino, nos revezamos nas lições na Escola na Maldade, por isso, decidimos, em assembleia sindical, que nas terças-feiras nenhuma de nós trabalhará com outra coisa que não a teorização das nossas práticas voltadas à ementa do curso. Nosso sindicato é trans-cis-geracional. Mas voltando à Escola, como a nossa disciplina foi introduzida há pouco tempo, graças aos esforços coletivos de nossa classe das putas críticas, vivas como espiãs na Guerra Fria, estamos acertando o tom das aulas. As alunas e os alunos são um público um tanto quanto divergente daquele com quem estamos mais habituadas a interagir, nesse sentido, estamos estudando quem são essas pessoas da tal Escola na Maldade. Nós mesmas andamos trocando uma ideia e decidimos que iremos participar de aulas de outras professoras e professores, interessadíssimas que estamos em modos de caçar fascistas já que não se faz um que não seja, não tenha a marca escarrada do sexismo, problema velho conhecido nosso. Algumas pessoas treinadas nas artes pedagógicas podem considerar pueril nossa preocupação com o programa da disciplina. Contudo, tudo começa já com a noção de disciplina. Na verdade, ninguém nos falou nestes termos. Nos surpreendemos com nossos próprios automatismos e enterramos a cabeça em antigas fórmulas. Armadilhas. Nessa, não ficamos presas. Chega de conversa: o que fazemos, como fazemos, como entendemos, como rearticulamos uma situação violenta? Um exemplo: se você está chupando um pau e a pessoa chupada acredita que pode enterrar a sua cabeça como uma planta na terra, você morde o pau e se afasta em direção a porta da rua. Aliás, primeira lição: evite a sua moradia, ela é esconderijo, não local de trabalho. Tal cuidado é indispensável para iniciar a pesquisa sobre os comedores desinteressados e seus contrários. Precisaremos abordar os aspectos da contratação de nossos serviços por terceiros ou terceiras a fim de que façamos a investigação, pois nestes casos as coisas se complicam um pouco, há que se discutir seriamente os movimentos e tempos da sedução. Pensando alto, anotamos em ata mais de quinze pontos que teríamos que colocar no papel para ensinar. Ainda não sabemos o quanto estamos dispostas a trocar numa primeira modalidade de estudos. Em aberto – aliás, abertura é um dos temas que não podem faltar – fisicamente e filosoficamente.  

Lá Lá Lá 

Hora do recreio. Todo mundo louco. Um grupo já está com uma folha A3 estendida sobre uma mesa posicionada no centro do parque. Ali alguém já traçou duas curvas que se encontram num prédio bem conhecido do pessoal não por sua amabilidade. Logo adiante, vêem-se outras pessoas provando meias arrastão, testando maquiagens, trocando solas de botas para que seja mais fácil correr. Umas três pessoas se olham e treinam truques de mágica. Dá para escutar alguém mencionar uma espécie de palavra paralalá [ou será abracadabra?]. Uma bola corre de um pé para outro pé para a coxa e para outra coxa e para o pé de uma guria bem pequena que andava pelos arredores da Escola, com cara de quem tenta olhar pelo buraco da fechadura, mesmo onde não existem mais que passagens com poucas e selecionadas chaves. Algumas outras pessoas trocam receitas de fermento para pão e são chamadas na mesa do mapa. As dispersas também são logo convidadas à távola redonda. Ouvem. Outro momento do recreio se inicia: lá, lá, lá, lá – cantam todos excitados, esfregando uma mão na outra, se sentindo prontos.  

Lado B 

Adiantamos que não pensaremos em termos de primeiro e segundo, ou seja, nosso sistema de classificação evitará a ordenação hierárquica de todas as formas. Mas lados são lados de um mesmo objeto, sem eles, o objeto existiria de outra forma. Tendo estes dois pontos em mente, sugerimos: evitando hierarquias, nossa capacidade de pensamento se complexifica porque não procura somente as relações opositivas, encontrando muitas relações associativas (incluindo as contraditórias). Sendo assim, nosso B só existe por conta do A. Nosso A só pode ser A com nosso B. São juntos. Não opostos. São inteiros, não metades. São as pausas que escolhemos para apresentar um argumento que na realidade chega de supetão.  

Agradeça ao Senhor  

Ironia não se ensina. Ironia só acontece quando se sabe muito sobre algo. Quando se vive na verve de dobrar as pseudo verdades eternas, pretensamente naturais, bem apresentadas em manuais de aprendizagem rápida e rasteira. Desestabilizar todas as posições de poder que exigem cabeças baixas ou joelhos dobrados ou mãos estendidas diante do peito. Não há senhor no nosso céu e sob o nosso céu existimos todos. Sem senhores para agradecer, portanto. O que não quer dizer que não agradeceremos uma mão que pega firme no objetivo conosco. Sem o mando de um senhor onisciente, a orientação dos outros senhores de chicote, arma ou caneta na mão, perde sua justificativa transcendental. Os senhores ficam nus. Senhores? Quem? Não os reconheceremos. Os combateremos. Quem produz organizará junto com quem produz, sabendo valorizar a capacidade de cada um. Dizer mais o quê? Abaixo todo Senhor até que não reste nem a lembrança do conceito! 

Só há uma maneira de se viver 

MENTIRA. MENTIRA. MENTIRA. MENTIRA. 

Uma pessoa pode, sim, viver muitas vidas durante seu tempo sobre a Terra. Pode rodar por muitos lugares. Pode aprender a cosmologia de outros povos sem sair de casa por tudo que já foi registrado. Pode entender que a sabedoria não está num único livro, numa única história. Pode desvendar a si mesma através da troca com outras pessoas. Aliás, concretamente não existe um jeito só, uma maneira só. E não há razão para se imaginar que um jeito suprima outro jeito quando o encontro entre jeitos e a intenção real de mútua compreensão tende a fazer proliferar ainda mais jeitos até que algumas coisas pareçam um pouco semelhantes através dos milênios, séculos, anos, até mesmo dos dias. E não há qualquer razão para restringirmos o jeito ou os jeitos a uma só espécie, já que os jeitos das tantas espécies viventes são tão ricos quanto os outros. Aprender como movimento de nascer todos os dias.  

O amor  

O amor que não foi inventado por homens em gabinetes é aquele que nos interessa. O amor como sentido e ação que não aceita a posse travestida de segurança. Encontros que sabem estar no olho do furacão dos afetos que querem estar ao lado e não acima ou soterrados em palavras repetidas por séculos de adestramento sexual. O amor tomado na caminhada que se deseja junto, na beira da praia, ansiando mergulhos para abraçar molhado depois da onda passar. Uma presença para preparar a comida e ser comida, uma presença que não dá indigestão porque resiste a ser apodrecida por todas as normas que destroem a vitalidade dos corpos reduzindo-os a si mesmos ou mesmo amputando a si mesmos. Um amor mistura e esquecimento na embolação das peles e salivas e gozos. O amor de lembrar de que seria tão melhor fazer isso contigo, com ela, com ele, um amor que pode fazer mais quando o mundo diz: isso é pouco. O pouco do mundo capitalista será o mais dos amantes rebeldes, renegados, curiosos, teimosos, que desenham outro mundo com a ponta dos dedos nas costas de alguém que já é um universo. O amor como declaração de apreço pelo querer que aglomera. O amor verbo amar o real divino de viver junto.  

Rê Rê Rê Rê II 

Aprenda a xingar na hora certa. E vá aproveitar a sua festa preferida. Se o Pica-Pau bancar o engraçadinho nela, pega uma pena e escreve um destratado político.  

[Exercício de desvirtuar o disco “Agradeça ao Senhor” dos Atahualpa y us Panquis, 1993. Se funcionar, podemos fazer mais. Senão, azar. Por hoje acabou porque é a hora do almoço] 

Porto Alegre, 21 de fevereiro de 2024. 


Sara Caumo Guerra. Nasceu no interior do Rio Grande do Sul, Garibaldi, em 1982. Mora em Porto Alegre. Mexe com história, antropologia da ciência e da burocracia, relações de gênero e sexualidade, lê mil coisas que aparentemente não fazem sentido para o seu trabalho. Mil coisas. E aprende (contra também). 


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