I o amor não é um objeto estéril da mesma forma que o poema não é um objeto histérico
II teu medo frente aos ciganos denuncia teu medo daquilo que não fica para sempre -- te conto, nada fica --
III certo como os corpos são feitos de água e por isso vibram ao mais ínfimo sinal de som; dedicamos horas soltas à peregrinação esotérica d’um país-deriva: fábula rasa que se cita, en passant, quando na apanha das cerejas é preciso desinventar o silêncio, e certo ainda como a aferição da curva matemática que se traça quando arfante o filho do homem vai ao chão, para a conferência da saliva que se mede -- em mililitros -- na mãe que apaga o rabisco em carvão, [único contorno verdadeiramente livre] no rosto do menino; ficamos nós a aguardar a hora [factual] -- e preterida -- da declaração do óbito i.e., da incontornável asseveração que aquilo que ainda brilha é somente verniz & confete.
IV Duas bombas explodiram hoje no céu de Cabul arrebentaram-se mesmo antes de beijar o chão e o ar, se encorpando de ausências -- matéria-prima da fuligem -- fez-se um ‘entre’ que é o tempo próprio da espera do dente que, ao devorar a fruta, procura o caroço. Duas bombas, informa o periodista e restava a sala vermelha. você diria depois que as bombas quando explodem não produzem realmente som porque a morte chega antes o ruído é fato probatório aos que continuam vivos, ou melhor semi-vivos [sabemos, afinal, nenhum homem retorna inteiro da guerra] você é a prova Portanto é natural que recordemos o que fazíamos quando doeu mais e o interesse da boca -- magma pulsante -- quando conscientemente derradeira. iria mas fiquei pois você temia a ausência de som das bombas como um menino que segurando no cocho da mão um tacanho girino aguarda o escoamento da poça queria morrer, disse, comigo respirando-lhe n’ouvido foi, a sério, o último não porque nos consumiu a bomba mas porque na casa aquática no côncavo da mão, no côncavo do peito rareou[-se] o ar Duas bombas explodiram hoje no céu de Cabul restou-lhe o ruído surdo natural as testemunhas e a mim o sabor das cinzas que na terça passada lembrou-me ligeiramente mel. Duas bombas explodiram em Cabul, a contragosto sobrevivemos.
Henrique Grimaldi Figueredo é doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Pesquisador Visitante na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Atua como editor executivo do periódico Todas as Artes, situado no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (UPorto).