“Big Curves”?
1. Introdução
O corpo na história da arte sempre esteve em alta, seja em sua valorização na antiguidade greco-romana, seja em sua proibição ao longo da Idade Média. Na contemporaneidade, a temática acerca do corpo vem sendo cada vez mais discutida e os padrões de beleza cada vez mais desconstruídos e ressignificados, sobretudo, no que tange o ideal de beleza feminina. Levando em consideração a intensa pluralidade que é característica indissociável da natureza humana, torna-se cada vez mais inviável a tentativa de estabelecer como padrão uma determinada uniformidade no que tange à promoção de determinadas características físicas que as pessoas devem ter.
Essa expectativa sobre os corpos reproduz e potencializa, muitas vezes, uma estética quase inatingível, pelo menos para a grande maioria das pessoas e no recorte aqui proposto, deve-se considerar o Brasil como pano de fundo e os corpos brasileiros como núcleo que estrutura a presente discussão.
A cantora brasileira Anitta em seu hit “Girl from Rio” explora em seu refrão a questão do imaginário que se construiu acerca do corpo da mulher brasileira. Por vezes, numa visão estereotipada, a garota brasileira, neste caso, “girl from Rio”, é retratada como uma figura altamente sexualizada, reforçando falsas impressões e expectativas no que diz respeito ao que deve ser considerado um corpo ideal.
No entanto, diferente da letra (salvo pouquíssimas aparições), o clipe da música “Girl from Rio” ao invés de refutar esse estereótipo apenas reforça esse imaginário cristalizado sobre o que é o corpo da mulher brasileira e também do homem brasileiro. Para mais, faz-se passível de alargamento a presente análise para um padrão ocidental que se espalha – e se mantém – fortemente ao redor do mundo.
Este ensaio visa, portanto, analisar e refutar as contradições que se dão entre a letra da cantora Anitta e o clipe de sua canção, apoiando-se no ideal de beleza greco-romana como permanência do clássico na contemporaneidade.
2. O ideal de beleza greco-romana
Na Grécia Antiga, sobretudo no período clássico, que se deu entre os séculos VI e IV antes da Era Comum, durante o qual os gregos e os romanos experimentaram os grandes impérios, templos e edifícios públicos de caráter monumental a valorização dos corpos era algo de extrema importância entre estes povos, havendo uma predominância nos padrões que se reproduziam via arte, frequentemente representados e materializados via linguagem escultórica. A proporção era um elemento de grande importância, uma vez que fazia uso da matemática como base para conceber o objeto de arte.
Vale ressaltar que entre os gregos do período clássico havia uma busca pela perfeição por meio do equilíbrio, uma vez que tal conceito remetia às noções de sabedoria, elemento importante da cultura grega, posto que eram grandes produtores de conhecimento via metáforas e ensinamentos que lhes serviam como fonte para alcançar uma transcendência metafísica.
Segundo Platão, era apenas através do cultivo e valorização das virtudes que se edificava a psique, remetendo às coisas terrenas como fontes de desvio de tal trajeto edificante, no sentido metafórico da palavra. Nessa perspectiva, a busca por uma perfeição própria do mundo das ideias apoiada na metafísica platônica ganhava vida por meio da práxis artística.
O ideal de beleza grega era, portanto, uma busca pela perfeição. O corpo atlético, robusto, no qual os músculos se sobressaem era predominantemente próprio das representações masculinas. Os seios em tamanho proporcional e as formas curvilíneas, por sua vez, próprios da representação feminina. Posteriormente, os romanos se apropriaram de muitos conceitos e ideais da cultura grega.
Curiosamente, mesmo após 3 mil anos, essa busca ainda se faz presente, mas, muitas vezes, em detrimento da sabedoria e do conhecimento. No mundo pós-moderno a indústria cultural aliada à sociedade de consumo impõem padrões estéticos que remetem aos corpos greco-romanos, “proporcionais” em medida, atléticos, curvilíneos e esbeltos, tão difíceis de se atingir quanto crer no mundo ideal de Platão.
Mas o que de fato torna a canção “Girl from Rio” e seu videoclipe tão contraditórios assim? Analisemos.
3. Girl from Rio e a reprodução de padrões de beleza via linguagem audiovisual
Fazendo uso de influências da estética pin-up e de uma série de elementos caros à cultura dos anos 1950/1960, Anitta faz analogia à canção Girl from Ipanema (1964), do compositor Antônio Carlos Jobim e imortalizada na voz de João Gilberto, na qual cria-se uma aura envolta da mulher brasileira, retratando-a como mulher idealizada e símbolo de uma cultura, da nossa cultura.
Essa imposição torna-se nitidamente perceptível no mundo da música, no qual artistas, principalmente mulheres, devem sustentar corpos altamente sexualizados e que raramente dizem algo às outras pessoas, a não ser propiciar um complexo de inferioridade e incapacidade de atingir tais padrões, seja por questões sócio-econômicas, seja por questões culturais.
Nesse sentido, Anitta refuta a versão de Tom Jobim ao cantar
Hot girls, where I’m from, we don’t look like models
Tan lines, big curves and the energy glows […]
Let me tell you about a different Rio (yeah)
The one I’m from, but not the one that you know […]
Tradução
Garotas gostosas de onde eu venho nós não parecemos modelos
Linhas bronzeadas, grandes curvas e a energia brilha
Deixa eu te contar sobre um Rio diferente
Aquele de onde eu venho mas não aquele que você conhece […]
No entanto, ao promover seu videoclipe, a cantora faz uso excessivo de modelos, incluindo ela mesma, exibindo corpos extremamente idealizados e hipersexualizados que em nada refutam a noção de mulher ideal ou promovem a imagem de corpos fora do padrão ideal de beleza, as tais “big curves”, salvo rápidas aparições de figurantes obesos.
3. Conclusão
Ao observar algumas das estátuas gregas mais aclamadas do período clássico, é possível correlacionar os padrões de beleza tão valorizados na Grécia e na Roma antigas com os corpos mostrados no clipe de Anitta, até mesmo as poses que por vezes revelam um ar de leveza, equilíbrio e confiança., características predominantemente presentes nas esculturas gregas.
Por esta senda, a canção “Girl from Rio”, da cantora Anitta, levanta contradições que se confundem entre letra de caráter desconstruidor e um recurso audiovisual que reforça padrões e estereótipos da mulher brasileira e de corpos “belos” segundo às expectativas com as quais somos diariamente bombardeados via recursos digitais e as novas mídias.
Ainda que de forma sutil, percebe-se a permanência de determinados elementos da antiguidade no imaginário coletivo e a arte, em sua organicidade, retoma aspectos de diferentes períodos de sua história e faz uso de suas propriedades visuais para veicular a cultura dominante via cultura de massa e firmar padrões estéticos que alimentam a sociedade de consumo que vive em busca de atingir corpos irreais (no sentido metafórico da palavra) e se frustra ao não obtê-los.
REFERÊNCIAS:
Anitta – Girl From Rio (Official Music Video). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=CuyTC8FLICY> Data de acesso: 20 out. 2021.
COURI, Aline. Afrodite e Pin-Ups, o ideal de beleza estético. História das artes visuais. Blog da Disciplina HAV1. Disponível em: < https://hav120142.wordpress.com/2014/11/23/afrodites-e-pin-ups/> Data de acesso: 20 out. 2021.
Escultura do Clacissismo Grego. Wikipédia: a esciclopédia livre. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Escultura_do_Classicismo_grego> Data de acesso: 20 out. 2021.
FFLCH. Imagens da Antiguidade Clássica. Disponível em: < https://iac.fflch.usp.br/node/677> Data de acesso: 20 out. 2021.
Vênus de Arles. Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/V%C3%AAnus_de_Arles> Data de acesso: 20 out. 2021.
Lucas Rocha é artista visual, professor de idiomas, graduado em Artes Visuais – Licenciatura, pós-graduado em Docência em Literatura e Humanidades, pós-graduando em História da Arte: teoria e crítica e aluno especial do programa de mestrado em Estudos Culturais na EACH-USP. Atua na área da educação há 7 anos com uma abordagem pautada nos estudos decoloniais, culturais e literários, bem como temas transversais e uma proposta pedagógica plural. Tem como principais linhas de pesquisa crítica de arte, filosofia da arte (estética), estudos culturais e antropologia da arte.
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