É assustador ver como o tempo passa rápido e a gente vai ficando “experiente”. Em 2003, quando Lula assumiu seu primeiro mandato, eu estava com os meus 16 anos de idade, tinha votado pela primeira vez, estava às vésperas de iniciar o 2o. ano do Ensino Médio, sonhava em conquistar uma vaga na universidade pública e me preparava para fazer o Módulo I do Programa de Ingresso Seletivo Misto da Universidade Federal de Juiz de Fora. Fiz a prova na semana subsequente à posse do Lula, em janeiro. Ainda não tinha certeza de que curso faria. Mas foi nesse mesmo ano que escolhi, com todas as minhas convicções, que seria História. Filho de pequenos produtores rurais, estudante de escola pública em Juiz de Fora e recém-egresso do ensino fundamental cursado numa escola municipal de um município vizinho com menos de 3000 habitantes, o sonho ainda era distante, mas um sonho muito desejado. Tão desejado que, em 2005, conquistei a tão sonhada vaga, sem precisar pagar um centavo para cursinho pré-vestibular ou escola particular.
A notícia da aprovação foi bombástica. Nem dormi naquele dia. Era um grande feito! Universidade federal ainda era para poucos, mesmo nos cursos de humanas. Ainda não podia fazer ideia da reviravolta que Lula faria no ensino superior nos anos seguintes. Pois bem… Uma vez dentro da universidade, meu sonho passou a ser outro: conquistar uma bolsa de iniciação científica. Eis que o sonho se concretizou em 2006, quando fui selecionado para bolsista de um projeto da professora Dra. Cláudia Viscardi, que, depois de um ano, foi renovado, com a transferência para uma bolsa do CNPQ. Foi a primeira vez em que senti o orgulho de receber meu primeiro dinheiro, para pagar xerox, comprar livros, pagar RU, etc…
Em 2008, me formei. Em 2009, fui aprovado no mestrado, recebi bolsa da CAPES. Outra ótima notícia! Dinheiro muito bem gasto com livros, viagens de pesquisa… Era um orgulho e um luxo sair de Juiz de Fora para dar aquela “passadinha” no Rio de Janeiro (nossa eterna Corte) pesquisar no lindo e imponente Arquivo Nacional, ali em frente ao Campo de Santana ou Praça da República, instituição que funcionava em sua plena vitalidade e vigor.
Em 2010, Lula se preparava para passar o bastão à Dilma Roussef. Em setembro, o presidente discursou na praça cívica da UFJF. Na ocasião, saímos da aula da professora Carla Almeida no mestrado, ainda no antigo ICH, para assistirmos ao seu discurso. Primeira e única vez em que o vi de perto. Emocionante! Impossível não sentir a sua potente interlocução com o público.
Em maio de 2012, em pleno primeiro mandato de Dilma Roussef, defendi minha dissertação. No ano seguinte, manifestações começaram a “pipocar” pelo Brasil. O “gigante acordou” – diziam. Em 2014, conjuntura política super confusa: o país se dividia entre “coxinhas” e “mortadelas”. A oposição ridicularizava o fato de o Brasil sediar a copa do mundo. Usar camisa verde-amarela e torcer pelo Brasil eram sinônimos de comunismo e petismo. Torcer contra o Brasil era o “barato” da oposição. Não deu outra: um traumático 7×1 da Alemanha. Operação lava-jato irrompeu e trouxe, junto com seus heróis de açúcar, a ilusão de que a corrupção seria extirpada de vez do país. Iludiu tanta gente desavisada… Antipetismo, anticomunismo, anti-política, investidas pesadas da grande mídia… Resultado: democracia jogada fora como a criança arremessada junto com a água da bacia.
A partir daí, só derrotas. Dilma venceu Aécio por pouco, mas o oponente não aceitou a derrota. Crise insustentável. E dá-lhe antipetismo. O segundo mandato foi interrompido pela metade. Em 2016, Dilma é derrubada por um vergonhoso, vil e sujo golpe da oposição, em que deputados e deputadas votavam pelo impeachment em defesa da família, da ordem, de torturador asqueroso, o “terror de Dilma Roussef”. O estrago estava feito, as regras do jogo democrático estavam violadas. A criança caiu junto com a água da bacia. Pior: a criança se foi e a água suja ficou represada.
2018. Assassinato brutal de Marielle e prisão espetaculosa de Lula, troféu de juiz de província que diziam ilibado e alçado à categoria de herói do lavajatismo, da judicialização da política e politização da justiça. Como um tumor muito bem alimentado, Bolsonaro venceu se beneficiando do ódio antipetista. Os glóbulos brancos da democracia estavam baixíssimos. O tumor cresceu e venceu. O caos venceu. O ódio venceu. O negacionismo venceu. O autoritarismo venceu. A burrice venceu. O fanatismo venceu. O obscurantismo tomou conta. A desesperança obstruiu caminhos. O Museu Nacional foi carbonizado, enquanto o Brasil pegava fogo, ardia nas trevas.
2018 também foi o ano em que fui aprovado no doutorado. Retornava de um jejum acadêmico de seis/sete anos. 2019 sinalizava para tempestades fortes: as aulas começaram meses após a posse do dito cujo. Era difícil manter a concentração diante de um país caótico. Mas os estudos, em alguma medida, me faziam abstrair de toda distopia: leituras, viagens de pesquisa, congresso, etc. Recursos escassos, cortes bruscos de orçamentos para pesquisa, educação, perseguição ideológica a pesquisadores, professores, intelectuais, artistas… O medo da destruição das instituições custodiadoras de acervos era inevitável. Acervos e servidores definhavam diante de gestões catastróficas, assumidas por indivíduos incompetentes, assediadores, etc.
Mas aí veio 2020. Uma pandemia afeta o mundo e pega o Brasil literalmente com as calças na mão, dominado por obscurantistas, negacionistas e cultuadores da necropolítica. Atrasos na vacinação e corrupção envolvendo a compra de imunizantes. Resultado: um saldo de mais de 700 mil mortos pela Covid-19.
Arquivos e bibliotecas fechadas entre 2020 e 2021. Muitos acervos literalmente entregues às baratas. Em 2022, meu retorno ao Arquivo Nacional foi estarrecedor: instituição vazia, morta, instalações precárias. O vigor e a vitalidade outrora encontrados, nos tempos do mestrado, transformaram-se em “coisa do passado”. Nostalgia deprimente. Este foi o cenário de um país que, paradoxalmente, completava 200 anos de Independência. Bicentenário que se resumiu à dispendiosa teatralização do coração de D. Pedro I dentro de uma compota. Nada mais ridículo e coerente com a necropolítica bolsonarista…
Mas 2022, apesar de tudo, também foi um ano de esperança. Foi ano de eleição presidencial, da qual Lula saiu vitorioso e apoiado por uma frente ampla composta por muitos que, inclusive, fomentaram o antipetismo que jogou nossa infante democracia fora, junto com a água suja da bacia, que, a propósito, continuou suja, dentro da bacia.
Após recusar-se a passar a faixa presidencial e fugir do Brasil, Bolsonaro deixou a única contribuição positiva de seu governo para o país: abriu espaço para os próprios representantes do povo participarem do rito, num ato tão grandioso quanto o novo presidente.
Hoje, ainda lutando para finalizar o doutorado, vejo-me diante de um cenário com mais esperanças do que aquele encontrado em 2019. O primeiro indício é a nomeação de ministros e gestores comprometidos com a educação, a cultura e a pesquisa. A nomeação de novos gestores para o Arquivo Nacional e a Biblioteca Nacional não me deixam mentir. É um alívio ver profissionais amantes das letras e da cultura, tecnicamente capacitados, à frente de instituições cuja missão é custodiar e preservar o patrimônio intelectual do nosso país.
Ainda estamos longe de dormir com a cabeça tranquila no travesseiro, se é que algum dia o faremos. Os terríveis e bárbaros ataques e destruições dos prédios históricos e símbolos da República, em Brasília, no dia 8 de janeiro, nos fizeram logo acordar do efêmero piscar de olhos. De fato, democracia exige eterno zelo e vigilância. A cada dia, uma nova agonia. Mas o fato é que já podemos sentir certo alívio e alegria em ver o óbvio e o básico sendo restabelecidos. Mas não nos acostumemos com essa “extraordinária normalidade”. Não a naturalizemos a ponto de achar que democracia, direitos e funcionamento das instituições públicas são como folhas que nascem em árvores. Luta! Essa é a palavra de ordem e… de progresso, sempre.
Sérgio Augusto Vicente
Doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade, com habilitação em Patrimônio Histórico. Dedica-se a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Atualmente, escreve sobre a trajetória biográfico-literária do escritor mineiro Belmiro Braga (1872-1937). É professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG) e, atualmente, atua na Fundação Museu Mariano Procópio desenvolvendo pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos, oficinas e produção audiovisual. As exposições “Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação” e “Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio” são seus dois últimos trabalhos curatoriais concluídos, em parceria com outros profissionais das áreas de História e Museologia. É colaborador da revista “Trama” desde 2020, na qual publica ensaios, textos históricos, crônicas, contos e poemas
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