Episódio Cuca

1 de Setembro de 1910. A data marca oficialmente a fundação do Sport Club Corinthians Paulista, no bairro de Bom Retiro, em São Paulo. O clube nasce da união de cinco operários, que desejavam ter um clube onde pudessem praticar o esporte da elite, que por tantos anos foi limitado ou proibido para trabalhadores e pobres. A memória do clube conta que o primeiro presidente, Miguel Bataglia, chegou a dizer “O Corinthians é o time do povo, e o povo é quem vai fazer o time”. 1915, o Corinthians tentou inscrever um jogador negro na Liga Paulista, mas foi proibido, já que a regra vetava jogadores negros de participar do espetácuo; assim surge a famosa camisa preta com listas brancas do clube -como forma de protesto- e que mantendo sua decisão, foi punido e retirado do campeonato daquele ano. 1982, o Brasil ainda vivia em uma ditadura militar, porém no Parque São Jorge, o elenco do Corinthians começava uma nova gestão no futebol, onde todas as decisões eram tomadas através do voto igualitário entre os participantes do clube, a democracia que acontecia em meio à ditadura, foi nomeada como Democracia Corinthiana; o impacto daquele time foi enorme, e chegou a contar com jogadores participando das Dietas Já! O time da Democracia fez o clube buscar para si, o título de “clube da democracia” .1941-1979, era proibido que mulheres jogassem futebol no Brasil, o que fazia com que as jogadoras Corinthianas precisassem jogar sem o emblema do clube na camisa. Em 1982, após a Federação Paulista barrar um jogo entre as equipes femininas de Corinthians e São Paulo, Sócrates, um dos principais nomes do time da Democracia Corinthiana, chega a dizer que eles também não entrariam em campo se não deixassem as mulheres jogarem. Anteriormente, ainda na ditadura, quando o então presidente do clube apoiou o governo, nasceu a maior torcida organizada do Corinthians, a Gaviões da Fiel, com o intuito de apoiar o Corinthians, e resistir ao presidente e seus ideais ditatoriais. O clube cresceu e se tornou um dos maiores do país, com torcedores em todas as camadas sociais, mas cujo a memória segue se reconhecendo como o clube do pobre, do trabalhador, dos excluídos, dos marginalizados. O clube que foi chamado de ‘maloqueiro’ por rivais, numa tentativa de ofensa, e que reverteu tal adjetivo em orgulho, e alegria de ser popular. 

O historiador Benedict Anderson, ao estudar o nacionalismo como sentimento, cria o conceito de “Comunidades Imaginadas”, para falar que as nações existem no imaginário das pessoas antes de existirem territorialmente, e que se isso não acontecer, a nação irá ruir ou entrar em guerras civis. Usamos esse conceito para pensar as torcidas de futebol, que existem como Comunidades Imaginadas, de modo que mesmo sem um território, o sentimento é de nacionalismo, graças aos afetos que unem os torcedores enquanto cidadãos clubísticos de uma mesma nação de sentidos. Isso é visto de forma clara no Corinthians, conhecido como “a torcida que tem um time”, o clube seria a própria torcida, e não a instituição, os diretores, os

jogadores, ou demais funcionários. Assim, a nação é imaginada, a população é a torcida, e a constituição, é a identidade clubística. Recentemente, o técnico mais improvável foi contratado para comandar o atual elenco do Corinthians, e isso gerou revolta. Improvável porque Cuca, envolvido em um crime de estupro nos anos 80, sempre foi o nome que menos parecia fazer sentido com a história e identidade do clube que criou a campanha #RespeitaAsMinas. A contratação levou à diversas manifestações, públicas e virtuais, da torcida do clube, que com uma pressão gigantesca, levou o técnico a se demitir com apenas uma semana no clube. 

O episódio também aponta para importantes questões para a historiografia. A história é formada por diversos fatores, sendo um deles a memória, que é composta por narrativas do que se deseja ‘lembrar’ e do que se deseja ‘esquecer’. O Brasil tem problemas de lidar com a memória de seus eventos traumáticos, costumando sempre ‘esquecer demais’. Os discursos oficiais esqueceram a escravidão de negros e indígenas, esqueceram os diversos modos de exclusão das mulheres das mais diversas áreas, esqueceram a violação aos direitos trabalhistas, esqueceram as diversas ditaduras e as mortes de milhares. Esqueceram que o futebol foi crime para as mulheres até os anos 80. Esqueceram que negros eram proibidos de jogar, que trabalhadores eram limitados de jogar. O futebol segue esse padrão de narrativa que nos foi ensinado, e também costuma querer esquecer demais. O caso Cuca, revela isso, pois muitos se questionam para que deveria-se considerar uma história antiga, e que passou há tanto tempo. A historiografia responde: Para a história. 

Resta saber como o episódio vai ser lido e relido pela memória daqui em diante. A manifestação de repulsa dos torcedores corinthianos vai ser retratada como exemplo no futuro? A nota de repúdio postada pelas jogadoras do time feminino do clube, vai ser fonte de uma sacralização da resistência delas? O episódio também joga luz a futuras possíveis perguntas historiográficas sobre futebol e gênero. Para além do pensamento óbvio de que o esporte deve poder ser praticado por todos, levanta questões relacionadas à solidariedade de gênero masculino. O que leva diversos homens a defenderem tão imediatamente um outro homem envolvido em um crime? De que forma esse tipo de solidariedade se apresenta em coletividades de homens alinhados à pautas progressistas? O clube da democracia absorve uma democracia política no governo, mas não uma que signifique valorizar as mulheres? É democracia para quem?

Referências 

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ISBN 978-85-359-1188-6. 

MACHADO, Igor José de Renó. Futebol, clãs e nação. Dados [online]. 2000, v. 43, n. 1 [Acessado 4 março 2022], Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0011-52582000000100006>. Epub 02 Ago 2000. ISSN 1678-4588. https://doi.org/10.1590/S0011-52582000000100006. SOARES, Pâmela Camargo. Minha nação é o meu clube: como a rivalidade no futebol pode ser maior do que o nacionalismo. Ludopédio, São Paulo, v. 158, n. 34, 2022.


Pâmela Camargo Soares é graduada em história pela Universidade Federal do Espírito Santo, e mestranda em história pela mesma Universidade. Capixaba de família paulista, a paixão por futebol e pelo Corinthians se uniu aos estudos acadêmicos, e hoje a autora se especializa em estudar as relações entre futebol, história, sociedade, política e identidades.


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