Os diversos “Brasis” que coexistem dentro de uma suposta pátria amada, pararam em uma terça-feira que tinha tudo para ser só mais uma terça, mas não foi. Na terça-feira de 14 de março de 2018, Marielle Franco, uma vereadora até então desconhecida para muitos desses, mas conhecida e reconhecida por mais de 46.502 eleitores da cidade do Rio de Janeiro foi assassinada.
Mais do que uma vereadora, Marielle era “mulher, negra, mãe e cria da favela da Maré”, como ela mesma se intitulava, e foi sobre essa mulher negra que a atual Ministra da Igualdade Racial do Governo Federal, Anielle Franco, escreveu no livro “Minha irmã e eu: Diário, memórias e conversas sobre Marielle”, no ano de 2022, publicado pela Editora Planeta.
No livro, Anielle se debruça sobre a prática da escrevivência, conceito cunhado por Conceição Evaristo no seu livro “Becos da Memória”. No livro, a escritora é responsável por apresentar a escrevivência como um lapso temporal e de realidade entre o que aconteceu e como esse acontecimento é narrado através da escrita (EVARISTO, 2017).
Tendo isso em mente, Anielle recorre à escrita em seu diário para dizer para si mesma e para a sua irmã Marielle, os sentimentos, os acontecimentos e as recordações posteriores àquela fatídica terça-feira de 2018. Trazendo uma escrita recheada de recortes dos dias que sucederam ao assassinato de quem, além de mãe e mulher negra, era também filha e irmã mais velha de uma família afrocentrada, favelada, do funk e da missa.
Ao ter a irmã retirada de si e dos seus, Anielle, ou “Naninha”, como era chamada pela vereadora, encontra na escrita a possibilidade de se reconectar com a irmã, e ao publicar seu diário de memórias, possibilita que outras tantas mulheres negras se encontrem na história de duas irmãs que saíram de um ventre preto para alcançar tudo aquilo que merecem (FRANCO, 2022, p.102).
Da leitura de tantas histórias e memórias, fica perceptível que Anielle soube da importância de transformar o seu luto em luta, por entender que mulheres e meninas negras enxergavam na história de Marielle a realização de sonhos (FRANCO, 2022, p.25).
Com isso, a irmã mais nova de uma das vereadoras mais votadas na eleição municipal de 2016 do Rio de Janeiro, reconhece em seu diário que a escrevivência, para além de legitimar a sua dor, é uma forma de recriar memórias e possibilitar novos finais, mesmo que imaginários.
Assim, Anielle expressa algo que permeia por todo o seu diário: a existência de Marielle existe, resiste e reexiste em memórias, não só as da sua irmã, mas também de outras tantas mulheres negras para as quais Marielle virou semente.
Antes de ser brutalmente retirada do convívio familiar, antes de ser impedida de conhecer a sobrinha Eloá, Marielle participava de um evento intitulado “Jovens Negras Movendo as Estruturas”. Esse foi o seu último ato público, em vida, fazendo com que ela tenha findado a sua participação nesse plano, sendo semente para que outras tantas mulheres negras, como ela, movimentem a estrutura social que dizima corpos negros em destaque, corpos que ameaçam o pacto social vigente da branquitude assassina e corrompe, dentro da politica e da policia.
Marielle foi assassinada, mas seguirá impondo a sua existência, porque assim você disse Djamila Ribeiro (2019), a luta diária de mulheres negras é para obter o reconhecimento enquanto pessoa, através de uma existência negada socialmente. Já que em um dos seus mais emblemáticos discursos, ao ver a sua fala ser atravessada por um parlamentar branco, a então vereadora diz algo que ficaria marcado dali em diante “não serei interrompida!”. E não foi.
Referências:
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
FRANCO, Anielle. Minha irmã e eu: Diário, memórias e conversas sobre Marielle. São Paulo: Planeta do Brasil; 2022.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. 1ª ed. São Paulo: Pólen Editora; 2019.
Bianca Ramos Avelino
é graduada em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia e graduanda em Direito pela mesma Instituição. Participa de grupo de pesquisa no Programa de Doutorado da UFBA, pesquisando a temática da Justiça Restaurativa. É colaboradora no Serviço de Apoio Jurídico (Saju) e na Editora Lexis. É estagiária de Direito Administrativo e Ambiental. Foi bolsista PIBIC/-AF/CNPQ em projeto de pesquisa sobre remissão de pena de pessoas aprisionadas por meio da leitura e escrita.
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Mariele Franco. (Sempre) Presente) !