Até onde a vista alcança, reina aqui o instante.
Um daqueles instantes terrenos
que se pedem que durem.
WISLAWA SZYMBORSKA
Não esquecer significa chorar
a lágrima
sobre o musgo da pele
entre os galhos e as folhas das árvores
dentro da casa íntima
da memória
numa manhã
névoa e cinzas
na subida do monastério
Khewang Lhakhang
passos com soluços
a garganta gotejando
a partida
entre um pé e o outro
só o rasgo da língua estrangeira
Sagyel, a camareira no dia folga
era companhia na caminhada
matinal
de um dia
no calendário do inverno
no país da felicidade
enquanto ela sorria
o céu estremecia a vontade de nevar
no caminho
uma camponesa descia a montanha
com o útero nas mãos
e a velhice estampada nas franjas do vestido
o nunca visto
tornou-se a fotografia
na prateleira de cimento
da sala
esquecida
na primeira parada
a respiração pedia fôlego
Sagyel entrou em um pequeno mercado
comprou sementes comestíveis
ofereceu-me um punhado:
− Ooohh gratidão gratidão
thank you very much −
assim,
nasceram flores nos canteiros da boca
continuamos a subir
a trilha de formigas nas paredes
dos barrancos
a terra acesa de lembranças
a paisagem a vestir o silêncio
de samambaias e de altos pinheiros
as plantações de arroz como nas
savanas chinesas
uma ave no lastro da nuvem
um devagar das horas
a oferenda a Buda
na casa de Sagyel
o butter tea e o banho de pedras
quentes
ninguém sabe
a memória é uma oficina de ossos
no monastério da mais alta montanha
do vale
a subida dos degraus de madeira
labirintos aos pés de Buda
o dia lá fora
escuro escuro
flashes do tempo
a neve caía como pólvora branca
sobre os cabelos de fogo
de uma criança que apanhava da mãe
no cercado do quintal
na descida,
o desenho de aves na garganta
das árvores
um sino tocava o hino da partida
nenhum fôlego nas axilas
o vento já não pode mais levantar
o homem
as lembranças do monastério de Gangtey Valley
ficaram no diário
da colheita de um dia
sem o idioma dos pássaros.
Mírian Freitas, escritora, mineira, doutora em literatura comparada e professora na área de Letras do IFSUDESTE- Juiz de Fora. Publicou Intimidade vasculhada (contos), Exílios naufrágios e outras passagens (poemas), Quase (poemas), Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (poemas), Caio F. Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (ensaio ilustrado), Mosaico (narrativas curtas) e A memória é uma oficina de ossos (poemas). Organizou a antologia poética Alento, finalista do Viva Leitura (2016). Participou de antologias no Brasil e Portugal. Integrou o livro Mulheres- prosa de ficção no Brasil de 1964-2010. Possui textos nas revistas impressas CULT, CP Literatura e nas digitais Mallarmargens, Acrobata, Palavra Comum, Caliban, Ruído manifesto dentre outras.
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