Herança – Capítulo 11: A Tentação e o Filho do Meio

– Você não vai se arrepender. É dinheiro fácil, amigo. É sem preocupação.

Após algumas horas no Vicente, Ricardo já conversava com Joaquim, que lhe oferecia uma maneira de conseguir uns trocados sem muito esforço.

– Basta pilotar a moto. Sei que você foi um motoqueiro e tanto. Basta fazer isso, parceiro!

Ricardo, com a cabeça curvada para o lado, ouvia atentamente seu colega de copo. Pensava nas crianças, pensava nos estudos delas, e reluzia dentro de si uma chama de esperança de conseguir algo melhor para os seus meninos. Por uns segundos, ficou imerso nesses pensamentos, esquecendo-se de tudo ao redor. Uma névoa já pairava sobre sua cabeça, e seus pés já não sentiam firmemente o chão cimentado do bar do Vicente.

Havia duas pessoas no balcão conversando animadamente com o dono do estabelecimento; Ricardo e Joaquim proseavam no fundo, ao lado da mesa de bilhar. O rapaz, de olhos vívidos e expressão corporal confiante, passava a imagem de um Yoda ensinando a um Jedi. De vez em quando, com um cigarro à mão, soltava baforadas no rosto do companheiro, deixando-o ainda mais atordoado.

A poucos metros dali, um grupo de crianças e adolescentes brincava na rua. Entre elas, o filho do meio de Ricardo, Aufredo. A origem de seu nome grafado dessa forma vinha da superstição de seu pai, que queria que todos os filhos tivessem a primeira sílaba do nome escrita da mesma maneira. Assim, veio Augusto; em seguida, Aufredo e Aurora. Esta última foi em homenagem à música “Aurora”, de Mário Lago; em que estivera num carnaval com sua então namorada Noêmia e trocaram suas primeiras carícias ao som dessa famosa marchinha de carnaval.

Aufredo era um garoto avesso a confusões. Tinha um temperamento bem diferente de seu irmão mais velho. Era o garoto em quem Ricardo depositava mais seus anseios e projeto de um futuro promissor. Sagaz, perspicaz, quieto e observador. Naquela noite, porém, algo o transtornava. Um rapazinho, que o vivia provocando, chamando-o de playboyzinho da favela devido ao fato de ele estudar em colégio padrão A na cidade, resolveu dizer o que um de seus coleguinhas de sala falava sobre ele: Que todos na sala não queriam, de maneira alguma, se misturar com aquele garoto franzino, pobre e preto, deixando-o jogado pelos cantos dos corredores nos intervalos das aulas e excluindo-o do convívio entre eles. Apesar disso, quanto mais todos o sujeitavam a esse tipo de constrangimento, mais Aufredo se comprometia em seus estudos e se juntava aos seus livros como grandes companheiros de jornada.

– Olha aí o playboyzinho da favela… O que vai fazer agora? Agora que seu pai foi esculachado na escola e virou um vagabundo sem emprego, o que vai fazer, playboyzinho?

 Aufredo não pensou em outra coisa senão partir pra cima daquele moleque atrevido que ousava falar de seu pai. E a confusão estava formada.

Um dos garotos da vizinhança, sabendo do paradeiro do pai de Aufredo, correu até o bar e o chamou, que, atordoado e cambaleante, resolveu ir até o local. A confusão era na rua próxima, e, em pouco tempo, mesmo com dificuldade de reconhecer os obstáculos da calçada, Ricardo estava de frente pra aquele emaranhado de pessoas que gritava e batia palmas ao redor daqueles dois infelizes jogados no asfalto. Uma nuvem negra tomou conta daquele homem. Pensamento desconexo e confuso, como quem quer ver seus filhos felizes, educados e com uma profissão respeitável no futuro, ele atravessou aquele grupo, pegou seu filho pela parte de trás da camisa e o jogou com força sobre o muro chapiscado de uma casa. Seus olhos marejavam de raiva. Pegou o filho pelo colarinho da camisa já rasgada e desferiu alguns golpes em seu rosto com a palma da mão aberta. “Enquanto me preocupo com seus estudos, você fica brigando na rua!” O menino olhou assustado para o pai, sem reação, paralisado. O rosto começou a inchar, o nariz sangrou e suas costas estavam laceradas devido ao contato com o muro. Em instantes, Aufredo desfaleceu. O silêncio tomou conta de todos. Ricardo, ofegante, de frente pro filho caído, olhou ao redor, passou a mão pelo rosto e sentou-se ao lado daquele menino jogado no chão, com os olhos voltados pro nada.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br


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