Sentada no balcão do restaurante japonês aqui da rua, onde o sushiman já me conhece e acha um sarro montar meus temakis vegetarianos, sou abordada por um desconhecido. Como eu, ele também está sozinho. Eu acho engraçado quem come ervilha, ele diz, não tem gosto de nada. Demoro um instante para entender que ele está falando comigo, se referindo à cumbuquinha de edamame em frente ao meu prato. Estou acostumada a ouvir esse tipo de comentário tosco de quem come carne, mas achei aquele desconhecido audacioso. Pra começar, edamame não é ervilha, respondo. Percebo que ele fica sem graça e que talvez eu tenha sido ríspida demais. O sushiman me repreende com o olhar. Desculpa. É que eu tenho um lance com edamame, sabe?

Ele me encara, esperando que eu prossiga. Quando tinha vinte anos, eu passei um verão em Boston, fazendo um curso do Teatro de Arte de Moscou. Os professores falavam russo, mas tinham tradutores para inglês. O propósito do curso era vivenciar o método Stanislavski durante seis semanas e, na última, encenar as peças do Tchekhov. Percebo meu ouvinte torcer o nariz para os nomes difíceis (ou para um pedaço de wasabi grande demais). Contextualizo. Stanislavski é um figurão do teatro russo do início do século passado, influencia a gente até hoje. O outro, o Tchekhov, é tipo o maior dramaturgo da história. Tá? Muito que bem. Eles dividiram os alunos em duplas e trios. Eu faria a Natasha Stepánovna, da peça “A Proposta” com dois colegas estadunidenses, Andrew e Jesse. Essa peça é uma comédia que conta a história do Iván Lómov, um jovem frágil e hipocondríaco, que vai na casa do seu vizinho pedir para casar com a filha dele, a Natasha, que é pega de surpresa enquanto descasca ervilhas. O meu companheiro de balcão faz um gestinho com os dedos, reconhecendo que aquele é um detalhe importante. Antes do pedido de casamento, a Natasha e o Iván entram numa briga sobre os limites das propriedades rurais deles e para ver quem tem o melhor cão de caça. Enfim, no meio da treta, ele cai desmaiado aos pés dela, que fica desesperada porque acha que nunca vai conseguir casar. Quando ele acorda, eles noivam.

Não entendi, o desconhecido me interrompe, ela não deveria estar descascando edamame? Calma, digo com a boca cheia, vou chegar lá. O nosso diretor era um cara muito renomado, chamado Adolf Shapiro. Ele foi aluno dos discípulos diretos do Stanislavski. Um mestre, um erudito, gigantesco, a história viva. A gente chegou no ensaio com as falas já decoradas e os caderninhos em punho, muito sérios, famintos por conhecimento. Mas o Adolf não. O Adolf, queria se divertir. Ele disse que era o texto do Tchekhov que ele mais tinha montado na vida e que daquela vez queria fazer diferente. Azar o nosso. Tudo que ele

pedia era improvável e bizarro. Para você ter noção, na parte dos cães de caça, eu e o Andrew ficávamos de quatro, latindo um para o outro. E o Adolf ria uma risada muito grave e muito russa. Na hora das ervilhas, eu fazia a mímica de estar descascando, e ele queria que eu fosse sedutora. Como alguém pode seduzir descascando ervilha? Aí. Faço uma pausinha para mastigar e criar um efeito dramático. Ele contou uma história – escuta essa -de uma prostituta do Distrito Vermelho de Amsterdam que ficava naquelas vitrines, vestida de Branca de Neve. Ela olhava fundo nos olhos dos homens e cerzia um paninho de prato. Só isso, não tirava a roupa nem nada. Ele disse que passou horas ali, vendo ela coser. Até o tradutor ficou vermelho descrevendo o tesão do Adolf pela puta holandesa. Da? Eu quero que você descasque ervilha assim, olhando pro público, ele me disse.

Bem, eu tinha só vinte anos e fiquei muito frustrada. Eu estava ali para ser a Nina, da Gaivota, dar pausas tchekhovianas fazendo carão, e não para realizar fetiche de velho russo. O Andrew e o Jesse também estavam insatisfeitos e a gente xingava o Adolf com um monte de palavrão brasileiro que eu ensinei para eles. Aí, no camarim, logo antes da estreia, o Adolf apareceu com uma bacia de edamame. Não são ervilhas, mas devem bastar, falou num inglês grosseiro. Foi muito divertido para mim estar com vocês. Spasiba. Os olhos dele estavam cheios de lágrimas.

Sei lá, eu me emociono até hoje. A apresentação foi muito elogiada, acabou sendo memorável. Acho que foi aí que eu entendi o que era Teatro. Beberico meu guaraná, deixando a história reverberar. Nós, ocidentais, somos mesmo muito arrogantes, completo. É só isso? Meu interlocutor paga sua conta e me olha meio decepcionado. Para mim esse é o gosto de edamame, respondo. Ele fica de pé, se aproxima e pede licença para pegar uma vagem do meu potinho. Morde, mastiga em silêncio, ri e dá de ombros. Gosto de nada.


Gabriela Lemos é roteirista e dramaturga. Formada em Teatro e pós-graduada em Direção Teatral pela Escola Superior de Artes Célia Helena. Produziu a peça “Oração Para um Pé de Chinelo”, de Plinio Marcos; dirigiu as peças “Nem Romeu, Nem Julieta” e “Mesa Pra Cinco”, de autoria própria; produziu o curta-metragem “Não Vai Acontecer Nada com a Gente”; foi contemplada pelo Proac-2020 de Desenvolvimento de Séries, em parceria com a Roteiraria, com a série “Subsolo”. Atualmente, trabalha como produtora cultural na Secretaria Municipal de Cultura de SP e mantém o blog de crônica e contos “Fim do Prazo“.


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