O afeto poderia esperar 

O atraso não me foi permitido durante a infância. Às consultas médicas, eu iria de banho tomado, chegando dez minutos antes para passar pela secretária. Às festas de aniversário, chegaria no horário agendado, não antes, para não atrapalhar, mas também não depois, para ser útil na organização caso estivessem atrasados. Em reuniões de trabalho, quando eu fosse adulto, chegaria trinta minutos antes porque era bom sinal um candidato que se adianta. O mundo se atrasará, você veja, mas nós, não. Era o que papai me dizia todas as milhares de vezes em que precisaríamos esperar o atraso de alguém.   

As pontualidades não se limitariam aos relógios. Seriam também domínio do calendário: se alguém estivesse de aniversário, daria o presente sem me atrasar sequer um dia ou pensariam em esquecimento e falta de educação. Os embrulhos do Natal chegariam ainda em novembro, antes da alta dos preços, antes das filas dos atrasados. E as cartas de amor e os cartões postais cheios de saudades seriam enviados com muito mais tempo de antecedência porque os carteiros poderiam se atrasar. Mas eu não.  

Quando o mundo me deu meu próprio relógio e me tirou do controle do pulso do meu pai, eu me vi sozinho a cronometrar. E eu me atrasaria sem cerimônias. Tantas e tantas vezes a ponto de sequer vê-lo por semanas em nossos almoços marcados em restaurantes, porque ao meu sinal de demora, depois de cinco minutos, ele pegaria o primeiro ônibus de volta para casa. Não te esperarei se não tiver compromisso comigo. E eu tinha! Por Deus, como tive compromisso com papai.  

Eu sairia logo pela manhã, mas então o porteiro Joel me contaria que sua filha tinha passado na faculdade e eu pararia para comemorar. Já na rua um cachorro me seguiria, eu lhe daria um carinho na cabeça, depois uma criança sorriria para mim no ponto e eu conversaria com ela até que seu ônibus chegasse e o meu já tivesse partido. Eu esperaria pelo próximo e me sentaria perto da porta para ser mais rápido, mas dona Geralda entraria e me contaria sobre o falecimento do seu marido novamente e a vida perderia um pouco o rumo para nós dois. Ficaria para trás o meu ponto de descida. Eu voltaria correndo, digitando uma mensagem a ele, viraria a esquina sem ler os grafites, o relógio apertaria meu pulso e papai já teria partido.  

Ele se mudaria para a roça anos depois e nossos encontros, já tão infrequentes por culpa minha, se resumiriam a cartas entregues por carteiros que levariam, novamente, toda a responsabilidade pelos atrasos. Ele morreria horas antes de eu chegar para vê-lo, sereno e aparentemente sadio em sua varanda e ao seu enterro eu não me atrasei. Eu estive ao seu lado, posto tal qual um guarda, com a quantidade horripilante de cartas que escrevi e não tive coragem de enviar. Todas as palavras sobre o sonho de um afeto sem rigidez temporal silenciadas nas minhas mãos. Dele minha irmã herdou o Terreno, meu irmão o Santana.  

Eu herdei o Relógio de pulso. A pulseira de couro recém trocada, os ponteiros banhados a ouro, o fundo já amarelado e aqueles números retos e protegidos pelo vidro sem arranhões. O peso inacreditável de um acessório tão pequeno. O peso do que recebi e da escolha em fazer diferente. O peso do tempo no homem cuja vida foi tão coreografada e repetitiva quanto o tiquetaquear, tão pontual que se fez incapaz de viver fora do relógio, onde estariam as crianças correndo, as senhoras debruçadas em nós querendo conversa, os amigos que não agendamos de fazer. Destruí minha simbólica e pesada herança no sétimo dia num gesto de libertação — para ele, para mim —, arremessando-a ao piso frio, tão aliviado quanto saudoso, sussurrando que eu descobri a vida pulsante quando quebram-me os relógios.  


Fernanda Zeloschi é psicóloga, escritora teimosa e acredita nas faíscas do afeto através do @fazerafetar.  


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