Bicentenário da independência rima com democracia e eleições livres

As obras do acaso são infinitas.”  (Todos os nomes. José Saramago) 

Muitas vezes, datas cívicas são regidas pela lógica da coincidência. Nós, brasileiros e brasileiras, por exemplo, estamos vivendo um semestre conturbado, complexo com certeza, em que ocorrem quase que simultaneamente dois eventos marcantes da República: a efeméride do Bicentenário da Independência política do país, no dia 7 de setembro, e as eleições para presidente, entre outros cargos do legislativo, cujo primeiro turno ocorre no dia 3 de outubro deste ano de 2022. 

A coincidência nas datas fez com que o atual chefe do executivo anunciasse um golpe por ocasião da primeira data. Desde o 7 de setembro de 2021, Jair Bolsonaro vem “sequestrando” a festa cívica e a transformando numa demonstração de sua força militar num ato de coerção que visa intimidar as instituições democráticas a partir da divulgação de notícias falsas sobre o processo eleitoral brasileiro – conhecidamente rápido, eficaz e idôneo. 

Datas cívicas são sempre sujeitas a muitas batalhas narrativas, mas, nesse ano, a temperatura política do país anda particularmente elevada, de maneira a tornar o evento do 7 de setembro de 1822 um bom pretexto para todo tipo de manifestação. Antes que o bicentenário vire tão somente um motivo ideológico, é sempre boa hora para analisar o que, de fato, ocorreu naquela circunstância. 

A independência brasileira foi, conhecida e reconhecidamente, um movimento conservador que, em nome da manutenção do status quo da elite agrária, da escravidão e da extensão territorial do país, sacrificou o regime político e o caráter revolucionário do processo. Ou seja, ao invés da emancipação da metrópole levar a um regime presidencialista e participativo, no Brasil o poder foi parar nas mãos de um príncipe português, herdeiro da família de Bragança e Habsburgo. Com isso, o país se transformava numa nação independente de Portugal, sim; mas também numa monarquia cercada de repúblicas por todos os lados. Uma anomalia política nas Américas. 

Além do mais, logo na década de 1820, difundiu-se uma espécie de lenda do 7 de setembro; uma versão mítica que descrevia um movimento – que, diferente dos vizinhos – não implicou em lutas ou baixas de civis e militares. O suposto é que a mudança de regime fora lograda em plena paz e concórdia, na máxima ordem. Essa era, porém, uma narrativa contada sobretudo a partir da ótica da região Sudeste do país, das elites agrárias da região, que apagava as lutas que se travaram nas províncias do Nordeste – Bahia, Maranhão, Pernambuco e Piauí –, as quais não apoiaram de pronto a solução política encontrada, assim como desconfiaram da liderança da então capital, o Rio de Janeiro, que assumira tal posição administrativa apenas em 1763.  

Todavia, essa versão vitoriosa passou, nesses duzentos anos, por vários outros “sequestros”; ou seja, tentativas diversas de interpretação e de manipulação do sentido do evento. Ainda em 1830, um ano antes de d. Pedro I (do Brasil, e IV de Portugal) renunciar ao Império em função das pressões políticas locais, o mesmo elaborou uma sorte de “sequestro” palaciano, investindo na data do 7 de setembro às margens do riacho do Ipiranga como uma forma de destacar seu próprio protagonismo. Até então, não se falava do episódio e do local. A emancipação era lembrada a partir da sagração e coroação de d. Pedro I, ambos eventos centrais para a monarquia e vinculados apenas à lógica do poder concentrado no Rio de Janeiro. Chama a atenção como é apenas após 1830 que essa narrativa muito vinculada à liderança do então Príncipe Regente ganharia força, até se concretizar como uma visão oficial: uma independência monárquica que contou com uma liderança única e voluntariosa de um soberano europeu. 

100 anos depois, em 1922, no centenário da independência, foi a vez de São Paulo, o estado economicamente mais forte da nação, reivindicar para si o protagonismo. O suposto era que o evento ocorrido nos campos do Ipiranga marcava simbolicamente a pujança paulistana, o bandeirismo e o protagonismo de Estado. Era hora assim de “equiparar” a memória nacional, incluindo esse estado que ficara por muito afastado das esferas culturais e administrativas brasileiras.  

Mas o sequestro de narrativas não parou por aí. Em 1972, nos 150 anos da Independência, em plena Ditadura, os militares passaram a tratar da emancipação política brasileira como se fosse um ato militar, e representaram d. Pedro como um soldado. Tanto que a festa cívica deu lugar à manifestação militar, com o desfile regular de tanques, marchas bélicas e a exposição de armamentos pesados associados ao 7 de Setembro. Mais ainda, a Ditadura adotou a Independência para si, advogando uma versão muito conservadora que viu no evento uma demonstração de ordem: um movimento e não um golpe – o que efetivamente foi. Para arrematar, trouxe os corpos de d. Pedro e de d. Maria Leopoldina, numa espécie de lembrança material e fúnebre – uma homenagem derradeira para essa que é, antes, uma necropolítica. Uma exposição mórbida, vinculada a uma forma conservadora de pensar história como uma disciplina da morte, de um passado cristalizado.  

E a mesma direção está sendo seguida pelo atual governo de Jair Bolsonaro. Tanto que, já em 7 de setembro de 2021, o presidente atacou o Supremo Tribunal Federal, falou mal das instituições democráticas e anunciou que não se curvaria diante do resultado das eleições de 2022 caso não se sagrasse vitorioso. Usou da efeméride para reafirmar seu poder autocrático e, por meio da alusão histórica, pretendeu fortalecer a imagem que guarda junto a seu eleitorado. Não a de imperador, mas de “mito” (como é comumente chamado por seus fiéis seguidores); não a de governante autoritário, mas como aquele que se fia na ordem e que por vezes precisa da força para impor o que chama de “rumo certeiro da história”: um golpe da legalidade. Por fim, e de olho na agenda da Ditadura Militar, resolveu trazer emprestado – e com esquema de alta segurança – o coração de d. Pedro, que hoje fica guardado em formol na cidade do Porto, em Portugal. Projeto não há; portanto, sobra apenas o espetáculo.  

Sabemos que, globalmente, estamos vivendo um momento de grande desconfiança na democracia. Sabemos também que as democracias se tornaram, mundo afora, mais conservadoras e, assim, atentaram contra a sua própria estabilidade. Mas democracias são assim mesmo: carregam suas promessas – na luta por igualdade, liberdade e inclusão – e também seus problemas, suas contradições. Afinal, é sempre preciso repactuar e aprimorar a democracia. 

O Brasil vive um momento paradoxal. Nunca a palavra “golpe” foi tão referida, mas nunca se falou tanto, igualmente, em liberdade e soberania. Além do mais, se o bicentenário tem servido como pretexto para um governo de ultradireita, retrógrado e narcisista que pretende “enxugar” a democracia; as eleições que se aproximam, e serão realizadas no próximo dia 3 de outubro, nos chamam a atenção para a importância da sociedade civil e do seu protagonismo.  

Ulrich Beck definiu o contexto atual como uma “metamorfose social”. Um período em que o transitório parece ser permanente. Enquanto o novo, as novas estruturas, apenas se anunciam, os velhos padrões se recusam a sair de cena. Tal contexto gera muita frustração e insatisfação, mas também permite imaginar que, daqui a pouco, o velho não será mais reconhecido pelo novo.  

Quem sabe o Brasil venha se juntar a essa que é uma guinada progressista liderada por aqueles que estão sendo denominados de “novos reformadores latino-americanos” – com a eleição de políticos como Gustavo Petro na Colômbia, Gabriel Boric no Chile, Luis Arce na Bolívia, entre outros – e trazendo uma lufada de boa utopia. Esses devem ser novos começos, formas de refundar a democracia e assim honrar eticamente a ideia de independência.   

Como escreveu o escritor Machado de Assis, ainda em 1858, “somos livres nas páginas da história … somos já livres na voz do Oceano”


Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da USP. É autora, entre outros, de ‘Retrato em branco e negro’ (1987), ‘O espetáculo das raças’ (1993), ‘Racismo no Brasil’ (‘2001), ‘As barbas do Imperador’ (1998, Prêmio Jabuti/ Livro do Ano), ‘A longa viagem da biblioteca dos reis’ (2002), ‘O sol do Brasil’ (2008, Prêmio Jabuti / biografia 2009), ‘Brasil: uma biografia’ (com Heloisa Murgel Starling; 2015) e ‘Lima Barreto triste visionário’ (2017). Coordenou, entre outros, o volume 4 da ‘História da Vida Privada’ no Brasil (1998, Prêmio Jabuti / Ciências Humanas 1999) e a ‘História do Brasil Nação Mapfre/ Objetiva’ em 6 volumes (Prêmio APCA, 2011). Foi curadora de uma série de exposições: ‘A longa viagem da biblioteca dos reis’ (Biblioteca Nacional, 2002), ‘Nicolas-Antoine Taunay e seus trópicos tristes’ (Museu de Belas Artes Rio de Janeiro, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2008), ‘Histórias mestiças’ (2015), ‘Traições: Nelson Leirner leitor de si e leitor dos outros’ (Galeria Vermelho, São Paulo, 2015), ‘Histórias da infância’ (MASP, 2016), ‘Histórias da sexualidade’ (MASP, 2017). Desde 2015, atua como curadora adjunta para histórias e narrativas no MASP e é colunista do jornal Nexo


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