Leituristas 

As razões que levam os seres humanos a realizarem viagens são as mais diversas. Se colocarmos à parte as necessidades de trabalho e os encontros para rever familiares e amigos, o que costuma mover os viajantes é o anseio de explorar culturas e lugares desconhecidos. No entanto, há um tipo de viagem ou passeio específico que tem se revelado cada vez mais popular: conhecer locais citados nos livros que lemos. Assim, surgem roteiros turísticos que apresentam ruas, igrejas, prédios, restaurantes, cafés e museus relacionados à literatura. Alguns desses roteiros estão ancorados no sucesso efêmero de best-sellers, como O Código da Vinci. Outros apoiam-se na tradição e prestígio de obras fundadoras e atemporais, como Dom Quixote. E assim, inúmeros “leituristas” vivem experiências que evocam histórias e personagens que atiçaram sua imaginação, seja colocando-se dentro da La Mancha que serviu de cenário para as desventuras criadas por Cervantes ou diante das obras de arte e locais de interesse históricos citados por Dan Brown.  

O poder da literatura pode ser tão avassalador que gera até pontos turísticos inexistentes chamada “vida real”. Como exemplo desses curiosos locais que a priori “não existem” podemos citar a casa e a tumba de Julieta, os aposentos de Sherlock Holmes em uma pensão vitoriana e a Plataforma 9 e ¾. 

 A casa e a tumba de Julieta ficam em Verona, na Itália.  No afã de legitimar um dos principais atrativos da região, afirma-se que a casa pertenceu a uma das famílias rivais que, na vida real, teriam inspirado diversos textos até chegarem à tragédia imortalizada por Shakespeare. Na casa, de origem medieval, não falta nem a sacada na qual se desenrola a cena do balcão, uma das mais conhecidas do teatro e literatura ocidentais. Mas é preciso ressaltar que providencial sacada teria sido acrescentada à construção posteriormente, quando alguém teve a ideia de personificar o cenário na residência que pertenceu à família Dal Capello. O sobrenome, também encontrado na tumba de uma moça chamada, na vida real, Giulietta, foi interpretado como uma corruptela de Capuleto, nome de família da personagem Julieta.

Assim, apesar de oscilar entre a ficção e a realidade, a casa já conquistou seu espaço no imaginário dos leituristas, tornando-se, ao lado da tumba, marcos de peregrinação para os apreciadores da obra do bardo inglês e românticos de todas as partes do planeta Terra. 

A Casa de Sherlock Holmes é um caso ainda mais curioso, pois não é possível justificar sua existência conectando-a um algum excêntrico e famoso detetive de carne e osso que, de fato, tenha vivido ali. No entanto, lá está ela, situada na Baker Street, conforme descrito na obra de Conan Doyle. Mas, embora a rua não seja fictícia, o número 221-B é. Ele não existia até a criação dessa curiosa residência-museu de um personagem de ficção. Além da ambientação impecável de aposentos da Londres vitoriana em uma antiga pensão construída em princípios do século XIX, os visitantes podem apreciar objetos “pessoais” de Holmes, como o famoso violino, além de lembranças de casos solucionados por ele. 

O fenômeno que envolve a Plataforma 9 e ¾ é mais recente, mas, talvez o mais surpreendente. Todos os dias, inúmeros visitantes tiram fotos diante de uma simples placa em uma parede de tijolos na estação de trens King’s Cross, em Londres. A placa assinala a passagem para a fictícia plataforma 9 e ¾, de onde parte, nos livros, o trem anual para Hogwarts, a escola de magia onde estudou Harry Potter, criação de J.K. Rowling. No último dia 1º de setembro, a antiga estação foi tomada por uma multidão celebrando o hipotético embarque anual para a instituição imaginária. É um exemplo recente do poder da literatura em mesclar-se à cidade e seus espaços de forma tão intrínseca que a história e a função reais da estação de trens, fundada em 1852, cedeu lugar à sua participação na série que marcou a literatura infantil e juvenil na virada do milênio.  

E assim, de livro em livro, vai sendo construída uma relação duradoura – e até amorosa – entre os leitores e diversas cidades, com a Paris de Victor Hugo, a Londres de Dickens e o Rio de Janeiro de Machado de Assis. Eu mesma sou uma leiturista, por diversos fatores. Para começar, nasci em uma família de viajantes que trocam narrativas entre si. São visitas a castelos, pirâmides, cidades, templos, museus, cafés. Muitos episódios são engraçados. Outras são aventurescos ou mesmo tocantes. Mas não é só isso.  

Sou uma autora de livros para crianças e jovens com formação em Comunicação Social, com especialização nas áreas de Educação, História e Literatura. Faço parte da direção e coordenação de uma escola. Minha vida é contar histórias e educar. Se possível, os dois ao mesmo tempo. Por conta desse caldeirão de experiências e referências, sempre que começo a traçar as novas linhas de um original, tenho a intenção de contar não apenas uma história de ficção, mas, também, de compartilhar conhecimento. Mais que isso; escrevo com a intenção de despertar a curiosidade do leitor para o mundo que nos cerca. Em meus livros, a ficção é um caminho para a História e vice-versa.  

Com o tempo, fui aprendendo a mesclar fatos e invenções. Não na intenção de ludibriar o leitor, mas de plantar o desejo de conhecer – e se possível visitar – lugares memoráveis, repletos de significados e com muito para contar, assim como alguns autores, a exemplo de Júlio Verne e Monteiro Lobato, fizeram comigo na infância. 

Um dos meus primeiros textos, O Mistério da Conspiração Esquecida, trazia uma cidade fictícia do ciclo do ouro, em um mistério imaginário relacionado a um fato histórico verdadeiro – a Conjuração Mineira. Foi a primeira vez que exercitei essa mistura do real com o inventado. Hoje, em outra editora, o livro tem como título Nos olhos de quem vê (Saberes e Letras, 2022), mas os segredos de Ouro Claro, inspirada em Tiradentes e Ouro Preto, seguem inabaláveis. 

À uma conspiração esquecida seguiu-se O Enigma do Museu Mariano Procópio (Franco Editora,2007), onde a lógica foi invertida: o cenário, situado em Juiz de Fora (MG), era real e eu tinha que respeitar sua história e os fatos que envolviam personagens de carne e osso. O que não me impediu de utilizar elementos como viagens no tempo e até a mitologia grega para criar uma aventura. Tinha a ambição de levar muitas crianças juiz-foranas a se encantarem com o local, assim como eu. Com o benefício adicional de se orgulharem em ter, em sua cidade, uma joia como essa. O prejuízo de fortes chuvas, porém, manteve o museu fechado para reformas nos anos subsequentes ao lançamento do livro. Apenas recentemente suas portas foram reabertas. Mas gosto de pensar que, durante todo tempo de interdição ao público, pude ajudar, de alguma forma, a manter acesa a chama do desejo de gerações em conhecê-lo. A fórmula repetiu-se em mais três livros que traziam em seu enredo aventuras em museus do Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo. 

Em Clara Jones e a Pérola Perdida (Edebê, 2019), as aventuras eram construídas pela imaginação dos protagonistas com tudo que havia ao seu alcance, mas os detalhes envolvendo o local escolhido das peripécias – a distante China – eram tão reais que valiam informações (reais) à parte.   

Um dos meus livros mais recentes – Pedro e o Portal (Escarlate, 2021) – apresenta como um de seus cenários o Museu Nacional, sob as mais diversas facetas: ora como o antigo Palácio de Sã Cristóvão, descrito como no tempo de Pedro I, ora como o museu da Quinta da Boa Vista praticamente todo perdido no incêndio de 2018. O livro ainda “passeia” pelas praias e pontos turísticos da cidade do Rio de Janeiro e pelo Museu Imperial de Petrópolis, que ganha outro nome na trama, mas segue sendo identificado com facilidade na descrição de seus espaços. 

A Guarda Secreta do Imperador (Edebê, 2021), lançado no mesmo ano de Pedro e o Portal também traz um Pedro imperador – desta vez, o segundo – e o Rio de Janeiro como cenário. Um Rio antigo, de meados do século XIX que, no entanto, ainda sobrevive em muitas ruas, igrejas e diversos logradouros, como o icônico chafariz de Mestre Valentim.  

A construção de um leiturista por parte de um autor não é fácil; afinal, não sabemos o que vai capturar a imaginação do leitor pelos anos vindouros ao ponto de fazê-lo deslocar-se pelo mundo em busca dos cenários dos livros que buliram com sua imaginação. Também não sabemos se, ao passar por acaso por um cenário literário, ele fará a conexão com o que leu em algum momento da vida.  

Como autora, é muito difícil saber se ajudei a criar um leiturista, pois fico da dependência do relato do leitor para constatação do fato. Certa vez, porém, recebi um e-mail no qual uma jovem leitora dizia que suas férias já estavam escolhidas: seu destino era a cidade mineira de Tiradentes, para conhecer e vivenciar os cenários descritos no meu O Livro do Amor de Júlia e Tomás (Dimensão, 2014).  

Como leitora, lembro-me que uma das primeiras cidades que desejei conhecer na vida foi Atenas. O anseio nasceu das páginas de O Minotauro, de Monteiro Lobato. É óbvio que não seria possível eu reproduzir a visita da Turma do Sítio à Atenas de Péricles, no século V a.C.. No entanto, alguns cenários onde a trama se desenrola, como o Parthenon, ainda podem ser visitados, da mesma forma que meus leitores podem visitar o Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, ou o Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro.  

Minha ida à Grécia, aos 36 anos de idade, não foi realizada especialmente para reviver o Lobato lido aos 9 ou 10. Mas foi por conta da lembrança das aventuras criadas por ele que meus olhos se encheram de lágrimas na Acrópole. Havia ali uma espécie de realização alcançada pela grandiosidade de se estar no berço da civilização ocidental, é claro, mas aliada à singeleza da materialização de um sonho de infância e da alegria que os leitores têm quando esses cenários saltam das páginas dos livros. Essa sensação específica é algo que desejo, com frequência, compartilhar quando escrevo, fazendo uma mescla entre o passado e o presente, a ficção e a realidade. E ajudar a criar muitos leituristas, transformando duas das melhores atividades humanas – ler e viajar – em uma experiência ainda melhor e mais emocionante. 

Passeios guiados baseados em O Código da Vinci 

Passeio pela La Mancha de Dom Quixote 

https://www.civitatis.com/br/madrid/tour-dom-quixote/

Casa de Julieta 

https://casadigiulietta.comune.verona.it/nqcontent.cfm?a_id=42703

Casa de Sherlock Holmes 

Plataforma 9 e ¾ em King’s Cross 

https://www.kingscross.co.uk/harry-potters-platform-9-34

Imagens: Arquivo Pessoal

Capa do Texto: Robson Araújo

 


Glaucia Lewicki nasceu em Niterói-RJ. É formada em Comunicação Social pela PUC-RJ, com especialização nas áreas de Comunicação, Educação, História e Literatura. Atua na área de educação e é autora de livros infantis e juvenis adotados em escolas de todo o Brasil. Alguns já integraram o Catálogo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) para a Bologna Children’s Book Fair e programas de leitura de cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza, além do PNLD. Obteve o Prêmio Barco a Vapor 2006, com Era mais uma vez outra vez (Edições SM, 2007), considerado Altamente Recomendável pela FNLIJ e adaptado para o teatro em São Paulo e no Rio de Janeiro. Foi finalista do Concurso João-de-Barro com o texto original de Nos olhos de quem vê (Saberes e Letras, 2022) e do Prêmio Barco a Vapor 2017, com Clara Jones e a Pérola Perdida (Edebê, 2019). 

http://glaucialewicki.com.br


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