Sobre Arte e Maternagem

Não faz muito tempo que compreendi que boa parte do que eu sei sobre a prática da pintura, ocupa, em minha formação, um lugar semelhante ao da língua materna. Cresci brincando ao redor da minha mãe – na maioria das vezes com tintas e pincéis – enquanto ela própria, aprendia a pintar, foi no meu primeiro ano de vida que ela começou a estudar – uma tentativa de manter sua independência financeira enquanto cuidava de mim. Curiosamente, ela o fez mediante revistas, e a principal delas, era a revista da Bia Moreira, cujo método de ensino era chamado de “Bia-bá da Pintura”. Entre as minhas memórias mais antigas, está a lembrança de me sentar ao lado da minha mãe para praticar os movimentos de pincel ensinados nesse passo-a-passo, talvez por isso, antes de aprender o “beabá”, eu já era habilidosa no manuseio dos pincéis. 
 

A infância e a juventude da minha mãe foram complicadas, o relacionamento dela com o meu pai, mais ainda; o que a tornou uma mulher com uma autoestima muito baixa, isso era nítido até para mim, uma criança. Mas houve um momento em que isso foi diferente: o dia em que uma de suas pinturas foi selecionada para ser publicada nessa revista, que ela tanto admirava, ali eu entendi o impacto que a valorização do trabalho de uma mulher pode ter, muda a sua perspectiva sobre a vida, e o olhar que ela própria tem sobre si; por isso, acredito tanto na potência dessa edição especial em que estamos publicando tantas mulheres-mães que decidiram mergulhar na dor e na beleza desse percurso para desenvolverem seus trabalhos.

Minha mãe cuidou de mim, dos próprios pais, e também do meu, e quando me tornei mãe, percebi realmente o que isso significava, e do tanto que ela, ainda que não parecesse, ou dizia que não precisava, necessitava ser cuidada. A maternidade escancarou para mim, a estrutura de funcionamento do mundo, e me mostrou que só é possível que a engrenagem social vigente funcione porque existem muitas mulheres dedicando suas existências ao trabalho de manutenção da vida. Bem que não é por acaso que muitos perguntaram “que tipo de trabalho invisível é esse?” ao verem o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) desse ano, a desvalorização do trabalhador começa, antes de tudo, na desvalorização do trabalho desempenhado por mulheres-mães-pretas-periféricas. 

Nos últimos anos, além de ser meu objeto de pesquisa e meu trabalho, a pintura também tem sido o meio pelo qual eu processo muitas das minhas angústias. Ainda puérpera comecei a desenvolver alguns trabalhos sobre o tema, e nesse período, a fotografia foi quem me permitiu conciliar melhor a amamentação e as trocas de fralda, com a minha produção, agora artística. Foi só quando meu filho estava aprendendo a andar que consegui começar um quadro em óleo sobre tela, e, eu me sentia arrastada pelo trabalho do cuidado. 

            Criei, então, uma imagem do meu filho de fraldas, me segurando pelos cabelos e me puxando, como nas clássicas tirinhas dos “homens da caverna” arrastando suas mulheres. Contudo, essa imagem não me parecia correta, desisti dessa pintura e sem tentar articular simbolicamente de antemão o que estava fazendo, pintei a mim mesma, presa em uma moldura folheada a ouro, era um corpo com rosto disforme, que se debatia violentamente tentando escapar dessa prisão dourada. 

Ver ‚ a Pura Loucura do Corpo. Ada Medeiros. 2023.

Meu filho não era o meu carrasco, o vazio, a sensação de estar presa e sufocada por aquela rotina a ponto de não me reconhecer, não era culpa dele. O problema era e ainda é sistêmico! E, talvez, esse sentimento – que eu representei como uma moldura dourada – pudesse ser nomeado, como fez Betty Firedan em “A Mística Feminina”

As ondas feministas que antecedem a que estamos vivendo, apesar das conquistas, foram capitaneadas por mulheres pertencentes à classe dominante. Por essa razão, muitas outras mulheres e talvez, a maioria delas, bem como as suas necessidades, foram ignoradas nesse caminho. Junto ao Coletivo Arte e Maternagem, buscamos fazer uma curadoria para a exposição que é o coração dessa edição especial, que representasse melhor as tantas maneiras que as mulheres, com suas diferenças, experienciam o maternar. 

Penso, cara/e/o leitora, que você pode estar aí, do outro lado, se perguntando: por que arte e MATERNAGEM, e não, MATERNIDADE? Qual a diferença entre esses dois termos? Pois bem, a Bárbara Oliveira (aka Babi) nossa editora de literatura, fez uma pesquisa para nos ajudar a compreender melhor essa questão: 

O Antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia, ao falar sobre o quanto a cultura é dinâmica, encerra um dos capítulos do seu livro “Cultura: um conceito antropológico” com a seguinte frase: “concluindo, tudo que o homem faz, aprendeu com os seus semelhantes e não decorre de imposições originadas fora da cultura”. Tal afirmação provém de um livro publicado em 1986 e ainda que seja necessário revisitá-lo de maneira arrojada, partindo de uma visão diacrônica, percebemos como nosso trabalho pode alterar, mesmo que de forma singela, os paradigmas sociais, mentais, econômicos pré-moldados à maternidade e ao maternar. 

           Nós mulheres há séculos somos colocadas na posição de “reprodutoras”. Entre as brancas, de famílias abastadas, os filhos eram gerados para firmar acordos, garantir heranças. Já para as negras, pardas, indígenas, escravizadas, seus filhos eram produtos comercializados sem qualquer pudor. Foi no século XX, no pós-guerra, que a ideia de “instinto materno” começou a ser propagada pela mídia; por meio de campanhas publicitárias começaram a construir no imaginário social a noção de que mulheres só se realizavam enquanto indivíduos quando se casavam e tinham filhos. Paradigma que, apesar de muito questionado, ainda é massivamente disseminado em redes sociais e afins. Nós somos e continuamos sendo educadas para servir, mas não se enganem! Não servimos aos homens simplesmente, servimos, antes de tudo, ao mercado e por consequência, ao capital. 

O termo “maternagem” surgiu da cisão do termo maternidade, que anteriormente, era uma palavra que representava somente os laços consanguíneos e adotivos, e excluía, por exemplo, as famílias LGBTQIAPN+. Esse conceito, emprestado da psicologia, abrange o lugar seguro, a confiança. A maternagem, em primeira instância, não pensa no corpo em que a oferece, ela está preocupada em acolher a ansiedade, a dor e o choro, e, em certa medida, é subjetiva, já que ela requer a sensibilidade de quem aprendeu a ser forte. 

          Triste é saber que para desempenhar as funções do trabalho de manutenção da vida, não precisaríamos de tanta força, caso a sociedade se comprometesse com o cuidar. Como dizia o provérbio africano, “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”.  

Não foi só a minha mãe e eu que nos sentimos desvalorizadas e invisibilizadas, a maternidade costuma vir acompanhada de um profundo sentimento de solidão. Nos reunirmos para mostrar que, para além de repensar a maternidade, precisamos consolidar a MATERNAGEM como uma prática coletiva, é um grande passo em direção à revolução e a construção de uma nova estrutura social que permita mais saúde física e emocional para todos. 

            Por fim, gostaria de agradecer à Marta Mencarini e Tatiana Reis, curadoras do Coletivo Arte e Maternagem, à Clarissa Borges, Priscila Costa,  Karola Lobo, também a todas as artistas-mães que acreditaram na minha ideia e embarcaram nessa edição. À toda a equipe da Revista Trama, especialmente ao Frederico Lopes e à Barbara Oliveira, os verdadeiros pilares para que todas as edições dessa linda revista sejam colocadas semanalmente no ar. 

E, com a licença de todos, dedico essa edição especial à melhor mãe do mundo: a minha (in memoriam).           


Ada Medeiros é artista visual, graduada no Bacharelado em Artes e Design. Sua pesquisa contempla experimentações mais frequentes em pintura à óleo e aquarelas, desenho e fotografia, porém, por vezes, transita pela escrita e o audiovisual. Investiga a existência através das visualidades, numa busca obsessiva por atentar-se para a finitude da vida e a fragilidade do ser.

Co-autoria:

Bárbara Oliveira é calma, resultado da soma do acaso de tão acostumada com o adverso, como diz o samba. Fã de um bom pagode e conhecedora de referências em italiano pra várias sessões de O Poderoso Chefão, Bárbara contempla a vida com um olhar peculiar de quem consegue desnudar camada por camada de cada texto ou pessoa.
Antes uma leitora e fã dessa revista, graduada em Letras pela UFJF, depois de anos trabalhando em sala de aula, hoje, completa o time de autores e a equipe editorial da mesma com a maestria de um neurocirurgião, com os seus conhecimentos poéticos desbrava as vidas nessa cidade e conforta os amigos com sabedorias dos imortais da literatura.


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